Uma sindicância feita por técnicos a
serviço da Casa Civil da Presidência da República esquadrinhou as atividades de
Rosemary Noronha no governo. O resultado foi acomodado num relatório de 120
folhas. No seu pedaço mais constrangedor, o documento sugere a “instauração de
sindicância patrimonial em desfavor da ex-servidora.” Por quê? Detectaram-se
“indícios de enriquecimento ilícito.” A pedido da ministra Gleisi Hoffmann
(Casa Civil), a Controladoria-Geral da República abriu-se contra Rose, como a
investigada é chamada na intimidade, um processo administrativo.
Até o ano passado, Rose chefiava o
escritório da Presidência em São Paulo. Nomeada sob Lula, com quem mantinha
íntimas relações, ela foi mantida na função por Dilma Rousseff. Tornou-se
nacionalmente conhecida depois que a Polícia Federal a pilhou na Operação Porto
Seguro. Indiciada por formação de quadrilha, tráfico de influência e corrupção
passiva, Rose foi alvejada pela investigação da Casa Civil.
Os técnicos trabalharam por dois
meses. Anotaram no relatório final uma recomendação prosaica: os achados
deveriam ser mantidos em segredo. Avaliou-se que a divulgação poderia produzir
“instabilidade institucional”. Por sorte, sigilo sobre malfeitos não é algo que
orne com democracia. E o repórter Robson Bonin trouxe à luz o conteúdo do documento que se pretendia
esconder.
As constatações são de estarrecer.
Nada, porém, capaz de abalar os pilares de uma República que resistiu a
escândalos como o mensalão. A sindicância logrou reconstituir parte da rotina
de Rose no gabinete da Presidência na Avenida Paulista entre 2009 e 2012. Fez
isso tomando depoimentos de servidores e perscrutando mensagens eletrônicas,
registros de agenda e relações de visitantes.
A PF já havia revelado que Rose
valera-se da intimidade com Lula para influir na nomeação de diretores de
agências reguladoras e usufruir do esquema que traficava interesses privados e
comercializava pareceres de repartições públicas. Além de favores, Rose recebia
dinheiro. A sindicância da Casa Civil adicionou a esse prontuário novas
revelações. Afora a suspeita de “enriquecimento ilícito”, empilharam-se no relatório
anomalias como as seguintes:
1. Em suas mensagens eletrônicas, Rose jactava-se de pedir favores ao
“PR”, como ela se referia a Lula, o presidente da República de então.
2. Rose era solícita com os superiores e poderosos –uma forma de obter
favores e afago$ como cruzeiro marítimo, viagens e um final de semana no resort
Costa do Sauípe Golf Spa, no litoral da Bahia. Varejando os e-mails de Rose, os
técnicos verificaram que ela usou papéis da Presidência para comprar no
Departamento de Vendas VIP da Volkswagen um automóvel Space Fox abaixo do preço
da tabela.
3. Com os subordinados, Rose era grosseira. Em depoimentos, motoristas,
secretárias e copeiras desfiaram um rosário de humilhações. Numa passagem, Rose
ameaçou de demissão uma secretária. Humilhou-a a tal ponto que a servidora
passou mal. Foi socorrida por um bombeiro. Sua pressão arterial explodira.
Precisava de um médico. Alguém ousou sugerir a Rose que o carro oficial fosse
acionado para levar a secretária ao hospital.
Abespinhada, a então toda-poderosa da
Presidência proibiu o motorista de prestar o socorro. Bombeiro e paciente foram
ao hospital de táxi. Depois, Rose proibiu a secretária de lhe dirigir a
palavra. Na sequência, mandou-a ao olho da rua.
4. Rose utilizava um carro oficial como se fosse privado. Às custas do
contribuinte, ia ao dentista, ao médico, a restaurantes… Transportava
familiares e amigos. Dispunha de motorista. Usava-o como contínuo de luxo. A
bordo do veículo da Presidência, o chofer deslizava por São Paulo entregando
encomendas, realizando trabalhos bancários e fazendo compras. Também buscava no
aeroporto lobistas parceiros de Rose.
5. Em 2010, Rose foi passear com o marido em Roma. Absteve-se de tomar
providências comuns aos turistas mortais –reservar hotel e alugar automóvel,
por exemplo. Preferiu dirigir-se ao então embaixador do Brasil na capital
italiano, José Viegas. Mercê de sua influência, foi recebida com deferências de
chefe de Estado no Palazzo Pamphili, a mais suntuosa instalação diplomática do
Brasil no exterior.
O embaixador Viegas enviou a Rose um
convite oficial que a livraria de eventuais dissabores aduaneiros no
desembarque. Colocou-lhe à disposição carro e motorista. E hospedou-a na ala
residencial da enbaixada. Vale a pena ler uma das mensagens enviadas pelo
embaixador Viegas a Rose. Reproduzido no relatório da sindicância, o texto
anota:
Querida
Rose,
Benvenuti!
O
endereço é Ambasciata del Brasile, Piazza Navona 14, Roma.
Estou
retransmitindo esse e-mail a minhas secretárias, Francesca e Valéria, a quem
peço preparar com urgência uma carta-convite para você e seu marido, cujo nome
peço enviar a elas nos endereços que aparecem acima, assim como no meu. Mande o
número do fax para o envio da carta. Peço também que nos mande os dados da chegada.
Vocês ficam no quarto vermelho. Dia 26 faço uma pequena operação no menisco e
quando você chegar estarei na cama. Erika fará as honras, mas quero que vocês
entrem para que eu a reveja e conheça o seu marido. Buon Viaggio! Auguri! O
abraço do José Viegas”.
Com o auxílio da CGU, a sindicância
da Casa Civil verificou que Rose não foi a Roma a trabalho. Concluiu o obvio:
ao usufruir das facilidades diplomáticas bancadas pelo contribuinte brasileiro,
apropriou-se de coisa pública em benefício particular. Recomendou-se ao
Itamaraty a apuração do episódio.
Ouvido, o embaixador Viegas, que
deixou o posto de Roma no ano passado, disse que não lhe cabia “discriminar
quem chega com dinheiro público ou privado” à embaixada. Argumento inusitado,
muito inusitado, inusitadíssimo. Tomado ao pé da letra, Viegas trataria todo
mundo com os mesmos punhos de renda.
Quaquer brasileiro que lhe batesse à
porta teria carta anti-alfândega, carro, comida e os lençois do “quarto
vermelho”. A propósito, Viegas jura que o tal dormitório encarnado é um cômodo
secundário do palácio do século 17 que serve de sede para a representação
diplomática do Brasil em Roma.
O repórter Thiago Prado informa que
Rose anda magoada com seus ex-chegados. Até compreendera que os amigos nada
fizessem para impedir a PF de deflagrar a Operação Porto Seguro. Não se
conforma, porém, com o fato de a companheira Gleisi ter acomodado os perdigueiros
da Casa Civil nos seus calcanhares. Entende menos ainda o processo
administrativo que Gleisi encomendou à CGU.
Foi contra esse pano de fundo
envenenado que Rose decidiu mudar de advogados. Trocou os doutores que faziam
sua defesa, ligados ao PT, por uma banca de de Porto Alegre: Medina Osório
Advogados. Trata-se de um escritório que já prestou serviços ao PSDB federal e
a tucanos como a ex-governadora gaúcha Yeda Crusius.
No processo administrativo que corre
na CGU, os novos defensores de Rose planejam arrolar como testemunhas de defesa
alguns petistas de mostruário. Por exemplo: Gilberto Carvalho, ex-chefe de
gabinete de Lula e atual ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência;
Erenice Guerra, ex-ministra-chefe da Casa Civil e ex-braço-direito de Dilma
Rousseff; Beto Vasconcelos, segundo de Gleisi na Casa Civil; e Ricardo
Oliveira, ex-vice-presidente do Banco do Brasil.
É pena que Rose e seus advogados não
tenham incluído Lula no rol de testemunhas. Desde que sua ex-faz-tudo foi
pendurada de ponta-cabeça nas manchetes, Lula não disse palavra sobre o caso.
Num depoimento formal talvez se animasse a explicar por que permitiu que a
ex-subordinada transformasse intimidade num tipo de poder que avilta o serviço
público.
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