quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Conselho Federal e a psicologia chapa-branca

Escrito por Luciano Garrido | 02 Julho 2012

“Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo”. Voltaire

A atual gestão do Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem se notabilizado por uma série de vedações arbitrárias ao exercício profissional da psicologia. Agindo desta forma, a autarquia federal exorbita o rol de atribuições que lhe foi conferido pela legislação pátria. A Lei 5.766 de 1971, no seu artigo 6º, alíneas “c” e “d”, é bastante clara quanto aos limites do poder regulamentador da autarquia:

Art. 6º - São atribuições do Conselho Federal:

c) expedir as resoluções necessárias ao cumprimento das leis em vigor e das que venham modificar as atribuições e competência dos profissionais de Psicologia;

d) definir nos termos legais o limite de competência do exercício profissional conforme os cursos realizados ou provas de especialização prestadas em escolas ou institutos profissionais reconhecidos;

Contrariando os comandos expressos na lei, o CFP tem sido useiro e vezeiro em sustar a indepedência profissional dos psicólogos; e, por isso mesmo, tornou-se alvo não só de questionamentos técnico-científicos como, em alguns casos, teve decretada a nulidade de suas resoluções pela via judicial. É o caso da resolução nº 10/2010, que criou enormes embaraços ao chamado “Depoimento Sem Dano”, um projeto pioneiro implantado pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, no qual psicólogos jurídicos se colocam na condição de intérpretes das crianças vítimas de violência sexual no momento em que são inquiridas pelo magistrado durante audiência. Tal procedimento tem como objetivo evitar que o atmosfera aversiva da persecução penal contribua para revitimização da criança, acrescentando sofrimentos desnecessários ao trauma vivenciado. Portanto, é uma medida protetiva que encontra amplo respaldo legal no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

No Mandado de Segurança Nº 5017910-94.2010.404.7100, impetrado pelo governo do RS, a juíza federal Marciane Bonzanini foi enfática ao declarar que atuação do Conselho Federal de Psicologia está adstrita ao texto da Lei 5.766/71, de modo que a autarquia não tem competência para expedir resoluções que modifiquem o conjunto de atribuições dos psicólogos, já previamente estabelecido no texto da Lei 4.119/62. O limite de sua competência se restringe ao poder de regulamentar o estrito cumprimento desta norma. Ainda de acordo com a juíza, “essa é a essência do poder regulamentar”, sendo tal poder o único de que desfruta a autarquia em nosso ordenamento jurídico.

A juíza federal Marciane Bozanini prossegue sua argumentação afirmando que a resolução 10/2010, ao vedar uma prática profissional, extrapola o âmbito de competência do CFP e afronta o inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal (“é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”). A prerrogativa de regulamentar e disciplinar a profissão, segundo a magistrada, só existe nos limites da ética profissional, ressalvando-se que o pretexto ético jamais deve ser usado como artifício para “burlar a regra constitucional” (ver sentença judicial).

Ao analisar o teor da resolução 10/2010, a magistrada pode constatar o “furor legisferante” do Conselho Federal de Psicologia, que, além de usurpar atribuições do parlamento brasileiro, move-se dentro de uma perspectiva teórico-ideológica bastante particular. O que a magistrada talvez não saiba é que o protagonismo ideológico da atual gestão do CFP vem se mostrando uma compulsão praticamente irrefreável, e já foi alvo de exaustiva denúncia em outro artigo.

No que diz respeito à resolução 01/99, que versa sobre a assistência psicológica aos homossexuais, as posições teórico-ideológicas do CFP também podem ser identificadas com nitidez no texto do documento. E aqui convém esclarecer que pouco importa qual arcabouço teórico ou inspiração ideológica possa um psicólogo valer-se para opinar sobre o tema tratado na referida resolução. O que se pretende garantir é que a pluralidade teórica e o livre exercício da atividade profissional e científica prevaleçam sobre os espasmos totalitários de um grupo politicamente organizado.

Tornou-se prática corrente na psicologia brandir o código internacional de doença - CID como forma de chancelar concepções teóricas acerca de patologias e desordens do comportamento. Embora o termo homossexualidade não conste expressamente no elenco de categorias nosológicas dos códigos internacionais, tal orientação sexual pode, como qualquer outra, assumir formas patológicas passíveis de tratamento, como atesta o próprio CID 10 (ver F66). E mesmo na hipótese de que todas as manifestações da sexualidade venham um dia a ser normalizadas por um documento oficial, isso não seria impeditivo a que outros estudiosos do comportamento humano postulassem teoricamente uma opinião diversa. Os critérios de normalidade e anormalidade, de patologia ou doença, segundo o eminente filósofo e médico francês Georges Canguilhem, autor do livro O Normal e o Patológico, pressupõem concepções filosóficas, ideológicas e pragmáticas do profissional (ver Paulo Dalgalarrondo, Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais). Embora o CID seja objeto de acordo entre um grupo de estudiosos, não pode ser tomado como a última palavra em termos de critério diagnóstico, até porque tais estudiosos também não estão isentos de sofrer pressões de ordem política. É bom que se diga que os códigos internacionais de doença não são uma espécie de bíblia da psicologia clínica, como querem os fundamentalistas que fizeram do CFP a Meca do marxismo cultural. É bom lembrá-los de que o pensamento científico não conhece tabus e jamais caberá na cama de Procusto do politicamente correto.

Voltando à resolução 01/99, mais precisamente no seu artigo 4, que impede os psicólogos de se pronunciarem “de modo a reforçar preconceitos sociais existentes” (sic), a conclusão que se tira deste comando é que, não importando quão empiricamente fundamentada esteja a posição do psicólogo acerca de um determinado tema, se essa posição diverge de uma pretensa “psicologia oficial” do CFP, ela será fatalmente rotulada como preconceito.

A título de ilustração, vamos recorrer a um dos principais discípulos do dr. Freud, o psicanalista austro-húngaro Sandor Ferenczi. Num texto intitulado O Homoerotismo: Nosologia da Homossexualidade, ele escreve:

“Confessarei desde já que realmente quebrei a cabeça para resolver este problema [relativo às particularidades da constituição sexual e as experiências que estão na base da homossexualidade]. O único objetivo de minha comunicação é relatar alguns dados que são fruto da experiência e apresentar pontos de vista que se me impuseram, quase por si mesmos, ao longo de vários anos de observação psicanalítica de homossexuais. Eles deveriam facilitar a classificação nosológica correta dos quadros clínicos da homossexualidade.

Sempre tive a impressão de que, em nossos dias, aplicava-se o termo ‘homossexualidade’ a anomalias psíquicas demasiado diferentes e fundamentalmente sem relação alguma entre si. A relação sexual com o próprio sexo é apenas, com efeito, um sintoma, e esse sintoma tanto pode ser a manifestação de doenças e transtornos muito diversos do desenvolvimento, como uma expressão da vida psíquica normal. Portanto, era pouco provável, de imediato, que tudo o que designa hoje pelo termo genérico ‘homossexualidade’ pertencesse realmente a uma só entidade clínica.

Que se recorra a outros fundamentos teóricos para discordar, no todo ou em parte, da tese apresentada na citação, é algo absolutamente legítimo e até necessário. A evolução da ciência se dá precisamente pelo embate das conjecturas e refutações. O que não se pode fazer, sem incorrer em ato de leviandade, é acusar o referido psicanalista de simples “preconceito”. Todos sabem que o termo “pré-conceito” denota atitudes irracionais, irrefletidas e infundadas, o que não se aplica, de modo algum, a um estudioso da sexualidade humana que dedicou boa parte de seu tempo à compreensão do assunto.

Donde se conclui que o uso da palavra preconceito, no texto da resolução 01/99, não passa de um simples estratagema retórico, cujo único objetivo é o de abafar qualquer possibilidade de uma discussão racional em torno do tema, evocando reações emocionais de repulsa ou ódio frente a quaisquer opiniões divergentes. Se existe uma definição exata de preconceito, aí está ela...

Se o CFP continuar editando resoluções com essa linguagem apelativa, típica de panfletos estudantis, não vai demorar muito para que todo e qualquer diagnóstico em psicologia seja tomado como preconceito ou prática discriminatória. Ora, qualquer psicólogo principiante sabe que não existem diagnósticos sem discriminações, distinções, classificações, descrições e comparações. Porém, quando a resolução 01/99 emprega o termo ‘discriminação’, o faz de modo semanticamente condicionado pelo viés ideológico para eliciar na platéia respostas automáticas de oposição – da mesmíssima forma com que os cães de Pavlov babavam ao som da sirene.

Mais cedo ou mais tarde, quando todos os portadores de transtorno ou desordem mental assimilarem, sem exceção, a tese contida na resolução do CFP, também eles começarão a se sentir alvo de preconceitos e discriminações sociais diversos, ao ponto de fazer suas suscetibilidades pessoais inviabilizarem a própria atividade profissional e científica. Ironicamente, quando esse dia chegar, o direito à patologia estará assegurado justamente por aquela instituição que, por princípio, deveria promover a saúde mental e zelar pela respeitabilidade profissional dos psicólogos; enquanto que os códigos internacionais de doença, hoje usados como “argumento de autoridade” para referendar causas politicamente corretas, correrão sério risco de ser queimados em plena praça pública. Ou, quem sabe, na próxima parada do orgulho gay.

Luciano Garrido é psicólogo e especialista em Direitos Humanos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Bolchevique "traveco"

por Luiz Felipe Ponde

Todos os tipos de esquerda têm um traço em comum: são frouxos, como diria Paulo Francis

A esquerda é uma praga da qual não nos livramos. Egressa da tradição judaico-cristã messiânica, traz consigo a tara do fanatismo daquela. Mas ela tem várias faces.

No Brasil, após a ditadura, a esquerda tinha o absoluto controle da universidade e, por tabela, de muitas das instâncias de razão pública, como escolas de nível médio, mídia, tribunais e escolas de magistratura. Coitadinha dela.

Neste caso, do aparelho jurídico, sente-se o impacto quando vemos a bem-sucedida manobra da esquerda em fazer do Código Penal uma província ridícula do politicamente correto, para quem, como diz a piada, entre matar um fiscal do Ibama e um jacaré, é menos crime matar o fiscal.

Com a crise da Europa e a Primavera Árabe, a esquerda se sente renovada. Interessante como, no caso árabe, ela flerta com os movimentos islamitas. A razão é, antes de tudo, sua ignorância completa com relação ao Oriente Médio. A esquerda sempre foi provinciana. Ela confunde o fanatismo islamita com o fanatismo revolucionário. Lá, não existe "povo em busca de igualdade democrática", mas sim fiéis em busca de tutela absoluta.

Antes de tudo, devo dizer que há uma forma de esquerda que respeito: os melancólicos de Frankfurt. Para estes, como Adorno e Horkheimer, vivemos o "échec" (impasse, fracasso) da modernidade, devido à mercantilização das relações. Para mim, isso é um fato. E, enfim, a melancolia sempre me encanta. Os melancólicos têm razão.

Desde Deleuze, Derrida e Foucault (três chifres da mesma cabra), a esquerda assumiu ares de revolução de campus universitário, que encampa desde movimentos como o engodo do Maio de 68, passando pela crítica da gramática como forma de opressão (risadas...), até a ideia boba de que orientação sexual seja atitude revolucionária. Que tal sexo com pandas? Por falar em pandas...

Outra forma é a esquerda-melancia. Verde por fora, vermelha por dentro. Essa se traveste de preocupação com os pandas para querer roubar o dinheiro e o esforço alheios, além de refundar a união das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas com obrigação de comida orgânica no cardápio.

Existe também a esquerda "de classe executiva" que vai a jantares inteligentes. O mais perto que ela chega de qualquer coisa vermelha é do vinho que gosta de discutir, marca de sua falsa "finesse". Nada mais "fake" do que falar de vinhos como modo de elegância afetada.

Há também a religiosa, que se divide em duas. A budista "light", aquela que acha que o budismo é uma espiritualidade "progressista". A outra, a católica, pensou que Marx precisava de um Che Jesus e se deu mal. Nem a esquerda a leva a sério, nem a igreja a considera mais.

Claro, não podemos esquecer do feminismo, aquele que acha que o patriarcalismo é responsável por todos os males e afirma que Shakespeare era uma menina vestida de menino.

Outra forma é a esquerda multicultural. Essa confunde o mundo com uma praça de alimentação étnica de um shopping center de classe média, achando que "culturas" (esse conceito "pseudo") se misturam como molhos. Outra forma é a esquerda "aborígene", aquela que entende que a vida pré-descoberta da roda é a forma plena de habitar o cosmo.

Há também a esquerda da psicologia social, composta basicamente de psicólogas, pedagogas e assistentes sociais a favor da educação democrática e da ideia de que tudo é construído no diálogo. Essas creem que se pode dialogar com serial killers, culpando a escola, o capital e a igreja pelas mulheres que eles cortam em pedaços nas redondezas.

Todos esses tipos têm um traço em comum: são todos frouxos, como diria Paulo Francis.

Mas existe uma outra esquerda, a bolchevique "traveco". Os bolcheviques eram cabras que gostavam de violência e a praticaram em larga escala. Hoje, para a esquerda, pega mal pregar violência. Ela sofre com um problema que é a imagem de si mesma como um conjunto de seres puros, dóceis e pacíficos.

Então, para os simpatizantes da violência revolucionária bolchevique, a saída é se travestir de gente dócil e falar em "violência criadora". O amor e a violência são os mesmos, mas a saia confunde.

ponde.folha@uol.com.br
Lula não tem caráter.

Sociólogo Chico de Oliveira, fundador do PT, no programa Roda Viva, da TV Cultura