Escrito por Luciano Garrido | 02 Julho 2012
“Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o teu
direito de dizê-lo”.
Voltaire
A atual gestão do Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem se
notabilizado por uma série de vedações arbitrárias ao exercício
profissional da psicologia. Agindo desta forma, a autarquia federal
exorbita o rol de atribuições que lhe foi conferido pela legislação
pátria. A Lei 5.766 de 1971, no seu artigo 6º, alíneas “c” e “d”, é
bastante clara quanto aos limites do poder regulamentador da
autarquia:
Art. 6º - São atribuições do Conselho Federal:
c) expedir as resoluções necessárias ao cumprimento das leis em vigor
e das que venham modificar as atribuições e competência dos
profissionais de Psicologia;
d) definir nos termos legais o limite de competência do exercício
profissional conforme os cursos realizados ou provas de especialização
prestadas em escolas ou institutos profissionais reconhecidos;
Contrariando os comandos expressos na lei, o CFP tem sido useiro e
vezeiro em sustar a indepedência profissional dos psicólogos; e, por
isso mesmo, tornou-se alvo não só de questionamentos
técnico-científicos como, em alguns casos, teve decretada a nulidade
de suas resoluções pela via judicial. É o caso da resolução nº
10/2010, que criou enormes embaraços ao chamado “Depoimento Sem Dano”,
um projeto pioneiro implantado pelo Tribunal de Justiça do estado do
Rio Grande do Sul, no qual psicólogos jurídicos se colocam na condição
de intérpretes das crianças vítimas de violência sexual no momento em
que são inquiridas pelo magistrado durante audiência. Tal procedimento
tem como objetivo evitar que o atmosfera aversiva da persecução penal
contribua para revitimização da criança, acrescentando sofrimentos
desnecessários ao trauma vivenciado. Portanto, é uma medida protetiva
que encontra amplo respaldo legal no Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA.
No Mandado de Segurança Nº 5017910-94.2010.404.7100, impetrado pelo
governo do RS, a juíza federal Marciane Bonzanini foi enfática ao
declarar que atuação do Conselho Federal de Psicologia está adstrita
ao texto da Lei 5.766/71, de modo que a autarquia não tem competência
para expedir resoluções que modifiquem o conjunto de atribuições dos
psicólogos, já previamente estabelecido no texto da Lei 4.119/62. O
limite de sua competência se restringe ao poder de regulamentar o
estrito cumprimento desta norma. Ainda de acordo com a juíza, “essa é
a essência do poder regulamentar”, sendo tal poder o único de que
desfruta a autarquia em nosso ordenamento jurídico.
A juíza federal Marciane Bozanini prossegue sua argumentação afirmando
que a resolução 10/2010, ao vedar uma prática profissional, extrapola
o âmbito de competência do CFP e afronta o inciso XIII do art. 5º da
Constituição Federal (“é livre o exercício de qualquer trabalho,
ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a
lei estabelecer”). A prerrogativa de regulamentar e disciplinar a
profissão, segundo a magistrada, só existe nos limites da ética
profissional, ressalvando-se que o pretexto ético jamais deve ser
usado como artifício para “burlar a regra constitucional” (ver
sentença judicial).
Ao analisar o teor da resolução 10/2010, a magistrada pode constatar o
“furor legisferante” do Conselho Federal de Psicologia, que, além de
usurpar atribuições do parlamento brasileiro, move-se dentro de uma
perspectiva teórico-ideológica bastante particular. O que a magistrada
talvez não saiba é que o protagonismo ideológico da atual gestão do
CFP vem se mostrando uma compulsão praticamente irrefreável, e já foi
alvo de exaustiva denúncia em outro artigo.
No que diz respeito à resolução 01/99, que versa sobre a assistência
psicológica aos homossexuais, as posições teórico-ideológicas do CFP
também podem ser identificadas com nitidez no texto do documento. E
aqui convém esclarecer que pouco importa qual arcabouço teórico ou
inspiração ideológica possa um psicólogo valer-se para opinar sobre o
tema tratado na referida resolução. O que se pretende garantir é que
a pluralidade teórica e o livre exercício da atividade profissional e
científica prevaleçam sobre os espasmos totalitários de um grupo
politicamente organizado.
Tornou-se prática corrente na psicologia brandir o código
internacional de doença - CID como forma de chancelar concepções
teóricas acerca de patologias e desordens do comportamento. Embora o
termo homossexualidade não conste expressamente no elenco de
categorias nosológicas dos códigos internacionais, tal orientação
sexual pode, como qualquer outra, assumir formas patológicas passíveis
de tratamento, como atesta o próprio CID 10 (ver F66). E mesmo na
hipótese de que todas as manifestações da sexualidade venham um dia a
ser normalizadas por um documento oficial, isso não seria impeditivo a
que outros estudiosos do comportamento humano postulassem teoricamente
uma opinião diversa. Os critérios de normalidade e anormalidade, de
patologia ou doença, segundo o eminente filósofo e médico francês
Georges Canguilhem, autor do livro O Normal e o Patológico, pressupõem
concepções filosóficas, ideológicas e pragmáticas do profissional (ver
Paulo Dalgalarrondo, Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos
Mentais). Embora o CID seja objeto de acordo entre um grupo de
estudiosos, não pode ser tomado como a última palavra em termos de
critério diagnóstico, até porque tais estudiosos também não estão
isentos de sofrer pressões de ordem política. É bom que se diga que os
códigos internacionais de doença não são uma espécie de bíblia da
psicologia clínica, como querem os fundamentalistas que fizeram do CFP
a Meca do marxismo cultural. É bom lembrá-los de que o pensamento
científico não conhece tabus e jamais caberá na cama de Procusto do
politicamente correto.
Voltando à resolução 01/99, mais precisamente no seu artigo 4, que
impede os psicólogos de se pronunciarem “de modo a reforçar
preconceitos sociais existentes” (sic), a conclusão que se tira deste
comando é que, não importando quão empiricamente fundamentada esteja a
posição do psicólogo acerca de um determinado tema, se essa posição
diverge de uma pretensa “psicologia oficial” do CFP, ela será
fatalmente rotulada como preconceito.
A título de ilustração, vamos recorrer a um dos principais discípulos
do dr. Freud, o psicanalista austro-húngaro Sandor Ferenczi. Num texto
intitulado O Homoerotismo: Nosologia da Homossexualidade, ele escreve:
“Confessarei desde já que realmente quebrei a cabeça para resolver
este problema [relativo às particularidades da constituição sexual e
as experiências que estão na base da homossexualidade]. O único
objetivo de minha comunicação é relatar alguns dados que são fruto da
experiência e apresentar pontos de vista que se me impuseram, quase
por si mesmos, ao longo de vários anos de observação psicanalítica de
homossexuais. Eles deveriam facilitar a classificação nosológica
correta dos quadros clínicos da homossexualidade.
Sempre tive a impressão de que, em nossos dias, aplicava-se o termo
‘homossexualidade’ a anomalias psíquicas demasiado diferentes e
fundamentalmente sem relação alguma entre si. A relação sexual com o
próprio sexo é apenas, com efeito, um sintoma, e esse sintoma tanto
pode ser a manifestação de doenças e transtornos muito diversos do
desenvolvimento, como uma expressão da vida psíquica normal. Portanto,
era pouco provável, de imediato, que tudo o que designa hoje pelo
termo genérico ‘homossexualidade’ pertencesse realmente a uma só
entidade clínica.
Que se recorra a outros fundamentos teóricos para discordar, no todo
ou em parte, da tese apresentada na citação, é algo absolutamente
legítimo e até necessário. A evolução da ciência se dá precisamente
pelo embate das conjecturas e refutações. O que não se pode fazer, sem
incorrer em ato de leviandade, é acusar o referido psicanalista de
simples “preconceito”. Todos sabem que o termo “pré-conceito” denota
atitudes irracionais, irrefletidas e infundadas, o que não se aplica,
de modo algum, a um estudioso da sexualidade humana que dedicou boa
parte de seu tempo à compreensão do assunto.
Donde se conclui que o uso da palavra preconceito, no texto da
resolução 01/99, não passa de um simples estratagema retórico, cujo
único objetivo é o de abafar qualquer possibilidade de uma discussão
racional em torno do tema, evocando reações emocionais de repulsa ou
ódio frente a quaisquer opiniões divergentes. Se existe uma definição
exata de preconceito, aí está ela...
Se o CFP continuar editando resoluções com essa linguagem apelativa,
típica de panfletos estudantis, não vai demorar muito para que todo e
qualquer diagnóstico em psicologia seja tomado como preconceito ou
prática discriminatória. Ora, qualquer psicólogo principiante sabe que
não existem diagnósticos sem discriminações, distinções,
classificações, descrições e comparações. Porém, quando a resolução
01/99 emprega o termo ‘discriminação’, o faz de modo semanticamente
condicionado pelo viés ideológico para eliciar na platéia respostas
automáticas de oposição – da mesmíssima forma com que os cães de
Pavlov babavam ao som da sirene.
Mais cedo ou mais tarde, quando todos os portadores de transtorno ou
desordem mental assimilarem, sem exceção, a tese contida na resolução
do CFP, também eles começarão a se sentir alvo de preconceitos e
discriminações sociais diversos, ao ponto de fazer suas
suscetibilidades pessoais inviabilizarem a própria atividade
profissional e científica. Ironicamente, quando esse dia chegar, o
direito à patologia estará assegurado justamente por aquela
instituição que, por princípio, deveria promover a saúde mental e
zelar pela respeitabilidade profissional dos psicólogos; enquanto que
os códigos internacionais de doença, hoje usados como “argumento de
autoridade” para referendar causas politicamente corretas, correrão
sério risco de ser queimados em plena praça pública. Ou, quem sabe, na
próxima parada do orgulho gay.
Luciano Garrido é psicólogo e especialista em Direitos Humanos.