quinta-feira, 2 de maio de 2013

Lá vem mais barulho na comissão presidida por Feliciano; agora, imprensa inventa que projeto autoriza “cura gay” e trata homossexualidade como doença. É mais uma mentira influente. Ou: Trecho de resolução tem mesmo de cair! Xiii…


Lá vem confusão pela frente. E mais gritaria está garantida por uns bons dias. Até porque a imprensa, pautada pelo sindicalismo gay, já nem mais lê o que é e o que não é votado na Câmara. Reproduz o que dizem os militantes. Ademais, se os evangélicos estão de um lado, então cumpre ficar do outro. É um jeito burraldo de pensar. Não é jornalismo, mas militância. Assim, no entanto, são os dias. Até o verão passado, era proibido questionar a turma do aquecimento global. Mas aí o mundo não acabou e até esfriou… Vamos lá. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, decidiu votar na semana que vem o Projeto de Decreto Legislativo 234/11, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), que torna sem efeito o trecho do Artigo 3º e todo o Artigo 4º da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia. Já explico o que dizem tanto a resolução como o Projeto de Decreto Legislativo. Cumpre, antes, notar como a coisa está sendo noticiada.

Diz-se por aí: “Feliciano vai votar proposta que trata homossexualidade como doença”; “Feliciano vai votar projeto sobre cura gay”. Reportagem daFolha chega a atribuir à proposta de Campos o que nela não está. Explico daqui a pouco.

Então vamos aos documentos. A íntegra do Projeto de Decreto Legislativo estáaqui, com a justificativa. Reproduzo a parte propositiva em azul.

Art. 1º Este Decreto Legislativo susta o parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999.
Art. 2º Fica sustada a aplicação do Parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual.
Art. 3º Este decreto legislativo entra em vigor na data de sua publicação.

Então é preciso fazer o que virou raridade nas redações quando os lobbies “do bem” ditam a pauta; saber, afinal, que diabo dizem os trechos que seriam sustados.

“Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.”
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

Comento

Atenção! A proposta de Decreto Legislativo não toca no caput do Artigo 3º. Ele seria mantido intocado. Como deixa claro o projeto do deputado, seriam suprimidos apenas o Parágrafo Único do Artigo 3º e o Artigo 4º. Ora, afirma a reportagem da Folha (em vermelho): “O projeto de Campos quer sustar dois artigos instituídos em 1999 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). O primeiro impede os psicólogos de exercer ações que favoreçam ‘a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas’. O segundo afirma que os profissionais não podem emitir opiniões que reforcem ‘preconceitos sociais’ contra os homossexuais ‘como portadores de qualquer desordem psíquica’”. Como se vê, o trecho em destaque da reportagem do jornal está errado porque se refere ao caput do Artigo 3º, que permaneceria intacto.

Mistificações

Como se nota, ao suprimir esses dois trechos da Resolução 1/99, o Projeto de Decreto Legislativo não passa a tratar a homossexualidade como uma doença. É mentira! Também não autoriza a “cura gay”. É outra mentira! São distorções absurdas! Quando essa mesma proposta foi discutida na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, já foi uma baixaria infernal. Escrevi então a respeito. E algumas das considerações deste texto são daquele post.

Fato, não militância

Procederei a algumas considerações prévias, até que chegue ao cerne da questão. Avalio que a homossexualidade não tem cura pela simples razão de que não a considero uma doença. E nisso concordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde) e com o Conselho Federal de Psicologia. Assim, não acredito em terapias que possam converter héteros em gays ou gays em héteros (não se tem notícia de que alguém tenha buscado tal conversão). Mais: sexualidade não é uma opção — se fosse, a esmagadora maioria escolheria o caminho da maior aceitação social, e, nessa hipótese, as escolhas poderiam até ir mudando ao longo do tempo, à medida que determinadas práticas passassem a ser mais aceitas ou menos.

Há quem só goste de um brinquedo; há quem só goste do outro; e há quem goste dos dois. Essa minha opinião não é nova — o arquivo está aí. Os espadachins da reputação alheia, como escreveu Balzac, fazem questão de ignorá-la porque gostam de inventar inimigos imaginários para posar de mártires. Muito bem. Até aqui, não haveria por que os gays — ou o que chamo “sindicalismo gay” — estrilar. Mas é evidente que não pensamos a mesma coisa. Entre outras divergências, está o tal PLC 122 que criminaliza a chamada “homofobia”. Trata-se de um delírio autoritário. Já escrevi muito a respeito e não entrarei em detalhes agora para não desviar o foco.

Vamos lá. Desde 22 de março de 1999, está em vigência a tal Resolução 1 (íntegra aqui), que cria óbices à atuação de psicólogos na relação com pacientes gays. Traz uma porção de “considerandos”, com os quais concordo (em azul), e depois as resoluções propriamente. 

Listo os ditos-cujos:

CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde;

CONSIDERANDO que na prática profissional, independentemente da área em que esteja atuando, o psicólogo é frequentemente interpelado por questões ligadas à sexualidade;

CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade;

CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão;

CONSIDERANDO que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida sócio-culturalmente;

CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações

Aí vem o conteúdo da resolução. O caput do Artigo 3º, com o qual ninguém mexe (à diferença do que diz a Folha), é correto. Reproduzo de novo:

“Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.”

Está claro, então, que os psicólogos não atuarão para favorecer a patologização da homossexualidade nem efetuarão tratamentos coercitivos. E a parte que cairia? Pois é…Transcrevo outra vez (em vermelho e em destaque):

Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

Têm de cair mesmo!

Qual é o principal problema desses óbices? Cria-se um “padrão” não definido na relação entre o psicólogo e a homossexualidade. Esses dois trechos são tão estupidamente subjetivos que se torna possível enquadrar um profissional — e puni-lo — com base no simples achismo, na mera opinião de um eventual adversário. Abrem-se as portas para a caça às bruxas. Digam-me cá: um psicólogo que resolvesse, sei lá, recomendar a abstinência sexual a um compulsivo (homo ou hétero) como forma de livrá-lo da infelicidade — já que as compulsões, segundo sei, tornam infelizes as pessoas —, poderia ou não ser enquadrado nesse texto? Um adversário intelectual não poderia acusá-lo de estar propondo “a cura”? Podemos ir mais longe: não se conhecem — ou o Conselho Federal já descobriu e não contou pra ninguém? — as causas da homossexualidade. Se um profissional chega a uma determinada terapia que homossexuais, voluntariamente, queiram experimentar, será o conselho a impedir? Com base em que evidência científica?

Há uma diferença entre “verdade” e “consenso da maioria influente”. Ademais, parece-me evidente que proibir um profissional de emitir uma opinião valorativa constitui uma óbvia infração constitucional. Questões ligadas a comportamento não são um teorema de Pitágoras. Quem é que tem o “a²= b²+c²” da homossexualidade? A resolução é obviamente autoritária e própria de um tempo em que se impõe a censura em nome do bem.

Ora, imaginem se um conselho de “físicos” ousaria impedir os cientistas de tentar contestar a relatividade. O que vai ali não é postura científica, mas ideologia. Se conceitos com sólida reputação de verdade, testados empiricamente, podem ser submetidos a um teste de estresse intelectual, por que não considerações que dizem respeito a valores humanos? Tenham paciência! O fato de eu não endossar determinadas hipóteses ou especulações não me dá o direito de proibir quem queira fazê-lo.

Fiz uma pesquisa antes de escrever esse texto. Não encontrei evidências de resolução parecida em nenhum lugar do mundo. O governo da Califórnia, nos EUA, proibiu a terapia forçada de “cura” da homossexualidade em adolescentes. É coisa muito diferente do que fez o conselho no Brasil. Países que prezam a liberdade de expressão e que não querem usar o discurso da liberdade para solapar a própria liberdade não se dão a desfrutes dessa natureza.

Então vamos lá. Eu não estou defendendo terapias de cura da homossexualidade. Eu não acredito que haja cura para o que não vejo como doença. Também não acho que estamos nos universo das escolhas. Dito isso, parece-me uma suma arrogância que um conselho profissional interfira nessa medida na atividade clínica dos profissionais e, atenção!, dos pacientes também! Assim, no mérito, não vejo nada de despropositado na proposta do deputado João Campos. Ao contrário: acho que ela derruba o que há de obviamente autoritário e, entendo, inconstitucional na resolução porque decidiu invadir também o território da liberdade de expressão, garantido pelo Artigo V da Constituição.

É preciso saber ler

Proponho aqui um exercício aos meus colegas jornalistas. Imaginem um Conselho Federal de Jornalismo que emitisse a seguinte resolução, com poder para cassar o seu registro profissional:

“Os jornalistas não colaborarão com eventos e serviços que proponham qualquer forma de discriminação social”.
“Os jornalistas não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos contra pobres, negros, homossexuais, índios, mulheres, portadores de necessidades especiais, idosos, movimentos sociais e trabalhadores”

O idiota profissional diria: “Ah, está muito bem para mim! Eu não faria nada disso mesmo!” Não, bobalhão, está tudo errado! Você se entregaria a uma “corte” de juízes que definiria, por sua própria conta, o que seria e o que não seria preconceito. Entendeu ou preciso pegar na mãozinha para ajudar a fazer o desenho? O problema daquele Parágrafo Único do Artigo 3º e do Artigo 4º é o subjetivismo. Ninguém pode ser obrigado, não numa democracia, a se submeter a um tribunal que pode dar a sentença máxima com base nos… próprios preconceitos.

Nem nos seus delírios mais autoritários ocorreria a um conselho profissional nos EUA, por exemplo, interferir dessa maneira na relação do psicólogo com o seu paciente. Uma coisa é afirmar, e está correto, que a homossexualidade não é doença; outra, distinta, é querer impedir que o profissional e quem o procura estabeleçam uma relação terapêutica que pode, sei lá, disciplinar um comportamento sexual sem que isso seja, necessariamente, uma “cura”.
Os tais trechos da resolução, entendo, são mesmo autoritários e inconstitucionais. E têm de cair. E o que parece, isto sim, não ter cura é a vocação de amplos setores da imprensa para a distorção. Cada vez mais, a notícia se transforma num instrumento para privilegiar “os bons” e satanizar “os maus”. Isso é militância política, não jornalismo.

Por Reinaldo Azevedo

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Jornalista que diz ter sido estuprada aos 19 anos escreve, aos 56, um texto na Folha sobre a maioridade penal recheado de absurdos, de clichês e de inverdades óbvias. Pior: coloca-se como juíza das outras vítimas de violência!


Vai abaixo um dos posts mais longos da história deste blog — talvez o mais: 32 mil toques e um poquinho. Podem começar a fugir se for o caso, embora os meus leitores não sejam disso e prefiram texto a figurinha, não é mesmo? É diretamente proporcional à repulsa que senti ao ler um artigo na Folha de S. Paulo sobre a mudança da maioridade penal de 18 para 16 anos. 

Vai tudo explicado aí abaixo.
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Neste domingo, a Folha de S. Paulo publicou um artigo que, quero crer, será, um dia, considerado um marco no jornalismo brasileiro. Mas suspeito que não figurará na lista dos grandes momentos nem da Folha nem do próprio jornalismo em razão de suas implicações morais, éticas, filosóficas, o que se queira. Sob qualquer ponto de vista que adotemos — e convoquei também algumas das boas reflexões disponíveis sobre o perdão —, a publicação do texto ultrapassa fronteiras que, tudo me diz, deveriam ter sido preservadas. Vamos lá.

Luíza Pastor, 56 anos, jornalista, foi estuprada aos 19 anos, em 1976. Ela narra as circunstâncias. Seu estuprador era um menor de idade. No artigo que escreveu para o jornal (ou depoimento transcrito em primeira pessoa, não sei qual foi o procedimento), ela condena com severidade a proposta de reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos.

Eu poderia escrever apenas um comentário sobre o seu texto, fazendo alusões e citando trechos. Mas sempre prefiro, em casos que considero realmente importantes ou graves, reproduzir o artigo para que o leitor tenha acesso à fonte, ao estímulo que originou a minha escrita. O jornalista Marcelo Coelho, certa feita, sugeriu que é um procedimento autoritário. Não é, não! Autoritário seria omitir do leitor eventuais sutilezas que podem escapar a este articulista. Vamos lá.

O texto publicado traz uma introdução do próprio jornal que, quero crer, levará o corpo editorial da Folha, algum dia, a ao menos se questionar: “Agimos certo? Isso é moral e eticamente aceitável?”. Essa introdução segue em preto mesmo. Todos os meus comentários, doravante, seguirão em azul.
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O principal argumento dos defensores da redução da maioridade penal pode ser sintetizado em uma frase: “Queria ver se fosse com você”.

Pois foi com a jornalista Luiza Pastor, 56, casada e mãe de uma menina. Com apenas 19 anos, Luiza, ainda estudante da USP, foi estuprada por um garoto menor de idade. Experiência tão traumática, entretanto, não a transformou em defensora da redução da maioridade penal.

Há mulheres e homens inteligentes no comando da Folha. Certamente sabem que é um truque grosseiro reduzir a opinião de adversários numa contenda a um único argumento ou a um “argumento principal”. É uma das maneiras de tentar ganhar um debate mesmo sem ter razão. Nesse caso, basta escolher a proposição mais frágil do outro, para a qual julgamos ter, de antemão, uma resposta, e pronto! Declare-se a vitória!

Ignoro que esse “Queria ver se fosse com você” seja o “principal argumento” de quem defende a redução da maioridade penal. Até porque não há argumento nenhum aí. Ao contrário: isso é um não argumento, e dos mais fáceis, dos mais cretinos até. Porque bastaria, então, que aparecesse o tal “você” afirmando o oposto do que sugeriu o proponente, e sua tese desabaria. A Folha inventou um “ser coletivo” que tem aquela pergunta como “principal argumento” para dar a suposta resposta definitiva.

O segundo parágrafo da introdução da Folha corre o risco, se levada como uma tese geral do direito, de nos empurrar para um pântano moral — e ético — sem retorno. Sem contar que exercita o método de argumentação (e não o argumento) que, segundo entendi, contesta. Começo por esse segundo aspecto. O jornal, entendo, censura a personalização do debate. A tese de base, parece-me, é negar a importância das questões particulares, pessoais, localizadas, na definição de uma política de segurança pública. A Folha parte do princípio, isto é inequívoco, de que a indagação “E se fosse com você?” não é boa. Mas, se não é boa, que sentido faz publicar o texto de uma mulher que foi estuprada por um menor e é contra a redução da maioridade penal?

Eureca! A Folha está dizendo que o “E se fosse com você?” é, sim, uma indagação indevida na definição da tal política, a menos que, ATENÇÃO!, A REPOSTA OBTIDA COINCIDA COM A DO JORNAL — ou com a do clima influente na editoria ou na redação, sei lá eu. Estamos diante de um caso emblemático do pensamento autoritário: qualquer pergunta é pertinente se a resposta for “a” certa. Mas ainda não é a parte do pântano que conduz ao sumidouro. Chegaremos lá, agora com o auxílio do texto de Luíza Pastore. Ela segue em vermelho. Continuo de azul.
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Eu fui estuprada por um menor de idade e sou contra a redução da maioridade penal.

Atenção, caros leitores, o artigo poderia ter acabado aí. Por quê? Porque bastaria, para anular a suposta superioridade moral de Luíza para opinar sobre o caso, um depoimento que começasse assim: “Eu fui estuprada por um menor de idade e sou favorável à redução da maioridade penal”. Ou não existirão essas mulheres? Qual estuprada tem mais autoridade para opinar a respeito? A que é contra ou a que é favor? Admitindo-se, atenção para esta hora, que Luíza e a Folha queiram nos dizer alguma coisa com essa publicação, e elas querem, que coisa é essa? Qual é a mensagem? Luíza a sintetiza assim: “Justiça não é vingança”, e o primado foi parar no título de seu artigo-depoimento.

A questão, agora, se destina especialmente às mulheres, e a indignação das três aqui de casa não poderia ser maior. Se a evidência de que Luíza acha que “justiça não é vingança” está no fato de que, mesmo tendo sido estuprada por um menor, é contra a redução da maioridade penal, cabe indagar: as estupradas na mesma situação que pensam o contrário (e elas existem!), que eventualmente defendem a redução, são, então, apenas pessoas vingativas? Sigamos. Porque Luíza é contra a maioridade — e vocês verão que ela evoca as questões sociais —, sua opinião é necessariamente superior porque transcenderia os limites da própria contingência, o mundo meramente sensível, para habitar um céu de ideias puras, que não se deixa conspurcar pela experiência pessoal? Já uma estuprada que não entendesse a razão de o seu algoz permanecer impune seria apenas uma vingativa, eventualmente grotesca, com o cérebro embotado pela própria dor e por seu problemas privados? É isso? MAIS: ALGUÉM QUE NÃO FOI ESTUPRADO TEM MENOS LEGITIMIDADE DO QUE LUÍZA PARA OPINAR? Para dizer algo aceitável sobre a maioridade penal, é preciso ter sido vítima de um menor?

Que coisa assustadora! Que mau momento do jornalismo! O pântano do politicamente correto, estou cada vez mais convencido, tem mesmo um fundo infinito. Notem, que na esfera do pensamento lógico, estamos lidando com duas categorias de estupradas: a que se manifesta em presença (contra a redução da maioridade) e a estuprada ausente, que não tem voz, mas existe (ou não faria sentido Luíza se afirmar), que é favorável. Ao se declarar — ainda que por via oblíqua — a superioridade moral e ética de Luíza, lamento ter de concluir que a própria Folha recomenda às estupradas por menores, e devem ser muitos os casos Brasil afora, que adotem a opinião correta: contra a redução da maioridade.

Às mulheres estupradas (em princípio, por menores, mas será que só por eles? Veremos), caberia, além da superação do trauma, da dor, da humilhação, a tarefa adicional de compreender as circunstâncias sociais do criminoso, que o teriam conduzido, como a um autômato, para o ato violento.

Dadas as duas categorias de estupradas, uma é superior — a das que compreendem —, e a outra é inferior: a das que querem vingança. Teremos, infelizmente, de percorrer caminhos ainda mais espinhosos. Sigamos com o texto de Luíza.

Era o ano de 1976 e eu, estudante ainda, trabalhava como secretária de um pequeno escritório em um prédio cheio das medidas de segurança ainda novas para a época —crachás, catracas de acesso, registro de documentos na entrada e montes de seguranças fardados, espalhados pelo saguão.

Essa caracterização do excesso de segurança, ficará evidente, é importante no texto de Luíza. Como, na prática, ela retirará dos ombros do criminoso a responsabilidade por seu ato (e estaria supostamente autorizada a fazê-lo já que foi a vítima — nota: em direito, não está, não!), essa responsabilidade há de recair sobre os ombros de alguém. Acima, há a evidência de que os mecanismos de segurança falharam. Mais adiante, ela encontrará os culpados de sempre. Só que os seus culpados de sempre não são definidos nem por sua dor nem por seu trauma; são definidos por sua ideologia. Continuemos com ela.

A porta do escritório estava aberta, à espera de alguém que havia marcado de vir na hora do almoço. O menino entreabriu a porta, perguntou alguma coisa, aproveitou para espiar e confirmar que só estava eu no local, e daí a pouco retornou, revólver em punho, fechando a porta atrás de si.

“Tire a roupa”, foi tudo o que ele disse, apontando a arma. E eu, morta de medo, obedeci.

Não quero parecer desrespeitoso, mas esse “o menino” do texto de Luíza embrulhou o meu estômago. “Meninos” não saem por aí de arma em punho estuprando mulheres. “Meninos”, se meninos, não estão nem fisiologicamente equipados para estuprar. Esse “menino” já vem carregado de uma carga semântico-política que, infelizmente, não remete nem mesmo ao universo do perdão, e sim ao das escolhas, lá vai a palavra de novo, ideológicas. “Meninos” não dizem “tire a roupa” para mulheres de 19 anos com um trabuco na mão.

Era óbvio que ele era muito novo, subnutrido provavelmente, a arma tremia em suas mãos. A única coisa que eu conseguia pensar era que não devia reagir. Aguentei a humilhação e a violência do estupro, chorando de raiva e vergonha, mas finalmente tudo acabou e ainda estava viva.

O que quer dizer “era óbvio que ele era muito novo, subnutrido”??? Os estupradores adolescentes são “subnutridos” por definição??? Se Luíza, que é jornalista e conhece as palavras, diz que a subnutrição está numa relação de obviedade com o estupro, devem as mulheres temer especialmente os “meninos” subnutridos porque predispostos a esse crime bárbaro? Vejam a imagem do dito adolescente que “isqueirou” a dentista. Reparem no tamanho do asqueroso. O que Luíza poderia dizer a respeito? “Era óbvio que ele NÃO era subnutrido”? De sorte que subnutridos estupram e supernutridos “isqueiram”?

Esse “ainda estava viva” do fim do parágrafo causou-me um incômodo adicional. Ela teve, certamente, mais sorte do que Victor Hugo Deppman. Ela teve, certamente, mais sorte do que Cinthya Magaly Moutinho de Souza, a dentista. No contexto, no entanto, em que vem a frase, depois daquele “menino”, restou-me um gigantesco desconforto intelectual e moral. Eu realmente não sei até onde LUÍZA, A NARRADORA, não está a dizer a LUÍZA, A ESTUPRADA (sim, leitores, são pessoas diferentes), que ela é, de algum modo, devedora de seu algoz. Eu não sei até onde, nas entrelinhas desse texto, não está a suposição de que, ao menos, ele lhe deixou a vida, o que evidenciaria uma réstia de generosidade.

Vocês verão no curso do texto que Luíza tem uma receita para coibir a violência. Ela está ciente de que o rapaz que a estuprou o fez em razão de circunstâncias que não eram de sua escolha. Ora, se a miséria e a subnutrição o empurraram para o estupro, tem-se por óbvio, no caso dela, que não empurraram para o homicídio, o que era plausível. Se isso não aconteceu, então parece, apesar de todo o sofrimento, raiva e vergonha, que ela deva ser grata por sua vida. Grata a quem? No caso, só pode ser a seu algoz.

Ele me mandou ficar dentro do banheiro e sumiu, depois de ter escondido minhas roupas e levado uma pulseira de ostensiva bijuteria, além dos trocados para o ônibus.

Mais uma vez, nas entrelinhas do texto, a caracterização social do estuprador: levou uma pulseira de “ostensiva bijuteria” (deve-se presumir que sua carência o impedia de distinguir joias de badulaques) e também os trocados para o ônibus. Outros tempos talvez. Os assassinos da dentista usaram o Audi da mãe de um deles… E não eram subnutridos. E queriam mais do que o dinheiro do ônibus.

A certa altura que considerei segura, me atrevi a sair. Um segurança do prédio, que havia visto a porta trancada com a chave do lado de fora e estranhou, veio perguntar se estava tudo bem. Não, não estava, explodi, gritei e, chorando, larguei tudo aberto e fui embora, em busca do colo de minha mãe.

O texto, como vocês viram, começa com a falência do sistema de segurança. O estuprador, até agora, só foi movido pela ausência de vontade própria. E, aqui, tem destaque o segurança que nada viu.

Não, não fiz boletim de ocorrência, muito menos exame de corpo de delito. Eram tempos bicudos em que, estudante de jornalismo na USP, tinha mais medo da polícia que do bandido, por pior que ele fosse. Fiz os exames necessários no meu médico e me preparei para ir embora do Brasil para uma longa temporada.

Impressionante! Luíza já demonstrou que a segurança rigorosa falhou e permitiu a entrada do “menino”. Agora, tenta caracterizar um período histórico: a ditadura. E, segundo diz, uma estudante de jornalismo da USP tinha mais medo da polícia do que de bandido, atenção!, “por pior que ele fosse”!!!, embora ela tenha sido estuprada por um bandido, não por um policial. Se, a despeito do crime cometido, ela parece compreender as circunstâncias do estuprador, para os policiais, que não a molestaram, não há compreensão possível. Luíza faz, e me é bastante constrangedor escrever isto, do próprio estupro matéria de proselitismo político-ideológico. Mas ainda não chegamos à pior parte.

Dias depois, chegou em casa uma intimação para que fosse identificar um suspeito, um certo P. S., detido a partir de denúncia feita pelos seguranças do prédio. Na delegacia, ao lado de meu pai, ouvi barbaridades sobre a ficha corrida do garoto.

Ainda bem que os seguranças ao menos fizeram a coisa certa. O “menino” agora virou “o garoto”. Atenção que Luíza vai agora complementar o perfil do estuprador P.S.

Egresso de várias detenções, tinha o estupro por atividade predileta, mas sempre se safara. Filho de mãe prostituta e pai desconhecido, havia sido criado pela avó, uma senhora evangélica que tentara salvar-lhe a alma à custa de muitas surras. Era óbvio que algo havia dado muito errado no processo.

Luíza, como a gente vê, não foi estuprada nem por um “menino” nem por um “garoto”, mas por um coquetel de clichês. Parece que teve a má sorte de topar com o quadrado da hipotenusa da soma dos quadrados dos catetos do crime — ao menos para certa ideologia e para certa sociologia. Neste ponto, que se manifestem psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. O perfil do estuprador — e ele, diz a jornalista, “tinha o estupro por atividade predileta” — é particularíssimo. Pode até haver assaltantes estupradores, mas são males que se associam. Na maioria dos casos, o violador não quer bem material nenhum de sua vítima: extrai o seu prazer da humilhação, da submissão, da violência.

Embora os movimentos feministas frequentemente sejam parceiros dessa sociologia caduca da reparação, teve a prudência de tirar o estupro do rol dos crimes socialmente determinados — como vocês sabem, segundo penso, nem esse nem outro qualquer… Perguntem a qualquer estudioso responsável: a maioria dos estupros se dá entre parceiros sociais. O que quero dizer com isso? Homens pobres estupram mulheres pobres; homens de classe média estupram mulheres de classe média; homens ricos estupram mulheres ricas. Pior: boa parte das vítimas conhece seus respectivos estupradores.

Se a experiência traumática por que passou Luíza não a torna uma juíza superior na questão da maioridade penal, menos ainda a autoriza a dizer bobagens monumentais, que ligam o estuprador a condições sociais perversas. Pergunto: deveriam ser os estupradores punidos apenas a partir de determinada renda? Se a miséria, a mãe prostituta, a avó evangélica (por que o destaque para isso?) e espancadora fizeram de P.S. um contumaz violador de mulheres, o que explica o fato de haver estupradores com pós-doutorado? Noto que, 36 anos depois, Luíza não escreve por extenso o nome do “menino”, do “garoto”. Digamos que ele tivesse, à época, 17 anos. Hoje, se vivo, estará com 53. Como sabe todo psicólogo, como sabe todo psicanalista, como sabe todo psiquiatra, esse P.S. continua um… estuprador, ainda que tenha conseguido superar a miséria. Mas quê… Luíza lhe concede o benefício do ECA…

Estupradores são malvistos nas cadeias, como sabe toda gente — no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Nem os bandidos, “por piores que sejam”, condescendem com o seu crime porque podem até achar aceitável que se aponte uma arma contra o outro para lhe tomar os pertences; podem até “isqueirar” pessoas, mas consideram que o estuprador é um tipo que trai a confiança até dos seus iguais: o estuprador é aquele que poderia violar as respectivas mães, irmãs, namoradas e mulheres dos próprios bandidos que estão presos. Os PCCs e CVs da vida não aceitam estupradores em sua hierarquia. Não acho que os critérios do crime e dos criminosos devam ser adotados por pessoas decentes. Estou relevando o fato de que não há, na literatura médica, na literatura sociológica e no próprio mundo do crime, quem tenha, antes, associado o estupro à miséria ou a condicionantes sociais. E isso vale especialmente para aqueles que conhecem a miséria e a pobreza.

O quadrado da hipotenusa da soma dos quadrados dos catetos com o qual Luíza teve de se confrontar poderia ter desenvolvido uma porção de outras maldades — sempre se admitindo a hipótese de que a origem social condiciona o temperamento violento, o que acho patacoada, mas vá lá… O tal P.S., com a sua história, poderia cultivar as piores perversidades em razão desse quadro, mas, atenção Luíza!, estupro não!!! Consulte a literatura especializada. Jornalista, pense o que pensar, tem um compromisso com a verdade. O homem que se excita com o repúdio da mulher, com a  sua resistência, com o seu sofrimento e que se mantém apto a uma relação forçada mesmo correndo riscos é um tipo com uma doença psíquica. E isso nada tem a ver com pobreza. A consideração de Luíza é uma estupidez.  Adiante.

Enquanto o delegado nos contava tudo aquilo, outro policial entrou na sala e mandou a pérola: “Ah, de novo esse moleque? Esse não adianta prender, que o juiz manda soltar, o melhor é a gente deixar ele escapar e mandar logo um tiro. Vocês não acham?”

Luíza, infelizmente, só se deparou com clichês. Esse senhor é o quadrado da hipotenusa da soma dos quadrados dos catetos do mau policial, que desferiu um coquetel de senso comum, que se presta perfeitamente ao proselitismo. Não sei que tipo de juiz manda soltar menores estupradores, antes ainda do ECA ou hoje em dia. Mas digamos que tenha sido assim mesmo… Certamente, ele não oferecia a melhor solução. Mas pergunto a Luíza: ela enxerga alguma instância intermediária entre o estuprador solto e o fuzilamento do criminoso, que é o que supostamente propunha o policial-clichê? Espero que sim!

Posicionar-se sobre a maioridade penal aos 16 nem é a questão relevante. Há outra. A proposta do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, é que estupradores e menores que “isqueiram” pessoas fiquem presos por até oito anos, não apenas três. Aqui, eu cobro uma resposta não da Luíza estuprada, não da Luíza narradora, mas da Luíza defensora de uma causa. Digamos que a internação de oito anos resulte inútil para mudar o caráter de um estuprador; digamos, o que é falacioso, mas vá lá, que esse estuprador tenha sido o resultado de uma porção de carências, o que cumpre ao Poder Público? Deixá-lo solto enquanto não se resolvem os problemas sociais ou impedir que ele saia estuprando mais mulheres? Qual é a escolha de Luíza Pastor? Adiante.

Não, eu não achava. Eu tinha claro que a vítima, ali, era eu. Que, se tivesse tido ferramenta, oportunidade e sangue frio, eu teria gostado de poder matar o safado que me violentara — e dormiria tranquila o resto da vida. Mas tinha mais claro ainda que a vingança que meu sangue pedia não cabia à Justiça, muito menos àquele que pretendia descontar no criminoso sua própria impotência.

Pois é… Respeito a dor da Luíza estuprada, deploro o texto da Luíza narradora e abomino as implicações do que afirma a Luíza pensadora. Pode não parecer, mas os desdobramentos do que diz nos deixam entre a impunidade e a barbárie. De fato, não cabe ao estado praticar “vingança”, mas justiça. Seria preciso provar que baixar a maioridade penal seria um ato de vingança, hipótese, então, em que os EUA, a Inglaterra, a Alemanha, a Holanda, a Suécia etc. se vingam de seus adolescentes homicidas ou estupradores… Quando se cobra que um assassino ou estuprador permaneça mais de três anos preso, é de vingança que se cuida?

Luíza, vocês lerão, recusou-se a depor, o que me parece moralmente escandaloso — mas isso é lá com a sua consciência. Repudio é que seja apresentada como voz qualificada para debater maioridade penal porque, embora estuprada, é contrária à mudança da lei. Pergunto à Folha: e as outras vítimas de P.S.? “Ah, impossível encontrá-las…” Sim, eu sei. Até porque como saberão de quem está a falar Luíza. Mas existem, não? Sem o contraditório, uma narrativa como essa é peça de propaganda apenas.

Há mais: se o estado não pode fazer justiça porque isso se confundirá com vingança e se a vingança, segundo entendo de seu texto, é moralmente aceitável, mas desde que praticada pela vítima, o conjunto nos conduz à negação do estado de direito e à volta ao estado da natureza.

Esta senhora diz ter sofrido um estupro, e não serei eu a duvidar. Parece-me que seu texto apela a questões da maior gravidade — e, de novo, aqui, convoco simbolicamente os psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Luíza percebeu na hora a subnutrição do “menino”, do “garoto”, sua “mão trêmula” a segurar a arma, sua incapacidade de distinguir uma “ostensiva bijuteria” de uma joia, os trocadinhos que pegou para o ônibus, ou isso tudo é uma construção mental posterior, ditada ou pela necessidade de compreender o trauma (hipótese virtuosa) ou por escolhas ideológicas (hipótese viciosa)? Se percebeu na hora, com o conjunto de crenças que tem, não creio que, ainda que pudesse, teria, como sugere, matado o seu algoz — porque, afinal, seria matar alguém, segundo seus pressupostos, que não teve escolha. Também não lido com a hipótese de que condescendeu com as violências de seu algoz. Hoje, é certo, Luíza põe o estupro que sofreu na conta da luta de classes. Talvez essa compreensão superior das supostas raízes sociais da violência a tenha ajudado a superar a dor. Mas o conjunto da obra não faz dela uma pensadora qualificada. Sem que deponham outras vítimas de P.S., seu artigo é uma forma de usurpação: é como se falasse por todas as mulheres que o estuprador violou. E ela não fala. Vai piorar.

Recusei-me a depor; nada mais disse. Eles não precisavam de mim para condená-lo; já tinham acusações suficientes e não me deram maior importância. Ainda me chamaram de covarde, por me discordar de um justiçamento.

De que “justiçamento” ela está falando? Aqui, há apenas o ânimo, já manifestado, de atacar a polícia. A ideologia de tal sorte embota o cérebro que, sendo verdadeiro o depoimento de Luíza, ainda assim, ela deita um olhar compreensivo e até de compaixão sobre o seu algoz (“menino”, “garoto”, “mão trêmula”, “subnutrido”, “espancado pela avó”, “mãe prostituta”, “pai desconhecido”, “sem saber distinguir joia de bijuteria”, “precisando de uns trocados para o ônibus”), mas é implacável com a polícia.

E insinuaram que, se eu tinha pena dele, era porque, vai ver, tinha até gostado. Não preciso dizer do alívio que senti ao embarcar, dois dias depois, para fora deste país.

Não! Eu jamais insinuaria que ela possa ter gostado. Quem faz esse tipo de ilação diante do estupro padece de graves perturbações. Talvez fantasie com o crime, mas sem prontidão física para cometê-lo. Uma coisa, no entanto, é certa: Luíza se compadeceu de quem lhe fez tanto mal — a dar crédito a suas palavras, talvez mais do que ela imaginava até esse texto vir à luz.

Nunca soube que fim levou o criminoso, nem quero saber. Não me sinto mais nobre ou generosa pelo que fiz, mas apenas cidadã que raciocina sobre a vida real.

Trecho detestável! As mulheres estupradas “deste país” (como ela diz!) que não alcançaram o superior entendimento sociológico de Luíza seriam, tudo indica, menos “cidadãs” e teriam um inferior “raciocínio sobre a vida real”. Não sou seu confessor, mas ousaria dizer que, se ela não se sente “mais nobre e generosa” pelo que fez, sente-se, com certeza,  intelectual e ideologicamente mais bem posicionada.

Toda vez que ouço alguém defender a redução da maioridade penal como solução para o crime de menores, me lembro daquele P. S., de sua história, e renovo minha crença no que, naquele momento terrível, me ajudou a superar o trauma.

De novo, lá vou eu. De novo, chamo os psicólogos, os psicanalistas, os psiquiatras. Parece que Luíza superou, e bem, o trauma que sofreu, embora reste, certamente, a lembrança dolorosa. Mas garanto que a compreensão das condições sociais do estuprador não teve nada com isso, ainda que ela ache o contrário. E não lhe recomendo que vá escarafunchar. Se está vivendo bem, é desnecessário. Fosse como ela diz, isso abriria uma perspectiva terrível para as mulheres. Pergunto: Luíza estaria disposta a compreender as condições sociais de um adolescente rico ou de classe média que estuprasse uma mulher adulta? Ou a riqueza, na esfera psíquica, jamais oprime? Segundo o seu texto, a resposta é negativa. Então como ficaríamos “neste país”? A pena para estupro passaria a obedecer a um corte de classe? A pobre que fosse estuprada pelo pobre, deveria fazer o quê? Nesse caso, o sistema seria duplamente culpado? E no caso da rica violada pelo rico? Qual a resposta? Ela continua a pensar. Agora não é mais a estuprada. Agora não é mais a narradora. Agora é a jornalista pensadora.

Sem dar a todos, menores e maiores, uma oportunidade de educação e de recuperação, algo que exige investimento e vontade política, uma política de Estado consciente de suas responsabilidades, teremos criminosos cada vez mais cruéis, formados e pós-graduados nas cadeias e “febens” da vida.

É pura delinquência intelectual. Os fatos, no Brasil e no mundo, dizem o contrário. Há países muito mais pobres em que a criminalidade é escandalosamente menor. Luíza, tenho a certeza, não conhece os pobres — e aquele que conheceu a deixou com uma visão de várias maneiras distorcida. Um dos assassinos da dentista foi assaltar no Audi da mãe (farei um post específico sobre esse particular). O menor que diz ter “isqueirado” aquela pobre coitada não é exatamente um subnutrido. Ainda que as cadeias e as fundações que abrigam menores não sejam exemplos de recuperação, convido Luíza a pensar que as vítimas também precisam de uma resposta. Ter sido ela uma estuprada não empresta legitimidade especial à sua tolice.

Luíza precisa, ademais, estudar. Sua experiência pessoal não a torna um especialista. Nos últimos 30 anos, a situação social brasileira melhorou muito. Não é assim porque eu quero. É assim porque assim são os fatos. E, como já noticiei aqui, em 1980, havia 11,7 homicídios por 100 mil habitantes no Brasil. Em 2010, 26,2% — um aumento de 123%. A sua cantilena sobre as raízes sociais da violência — e até do estupro, afirmação inédita na história da sociologia, da criminologia, da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise — é desmoralizada pelos fatos. O Nordeste brasileiro exibe taxas jamais vistas de homicídio, embora a economia tenha crescido a uma média superior à do resto do Brasil. Ela vai concluir.

Se os políticos quiserem fazer algo realmente eficaz para combater o crime na escalada absurda que vivemos, terão que enfrentar os pedidos de vingança dos ofendidos da vez e criar um sistema penitenciário que efetivamente recupere quem pode e deve ser recuperado. Sem isso, qualquer mudança nas leis será pura e simples vingança. E vingança não é Justiça.

Ter sido estuprada e ter descrito as razões de seu violador não confere a essa senhora o direito de se referir às vítimas como os “ofendidos da vez” Os pais de Victor Hugo Deppman são apenas os ofendidos da vez, dona Luíza? Nesse caso, o rapaz nem pode dar aquele suspiro de alívio (ou algo assim) que a senhora experimentou ao se constatar viva. Porque vida não lhe sobrou. Os familiares da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza são apenas os ofendidos da vez, dona Luíza? Ela também não pode recolher os próprios cacos e dizer: “Ao menos estou viva”.

O estupro que a senhora sofreu não lhe confere o direito de ser arrogante com a dor alheia. Também não lhe dá legitimidade para qualificar de “vingança” o justo desejo de uma punição maior do que três anos para quem estoura o miolo dos outros ou incendeia pessoas.

O seu testemunho, no fim das contas, é um completo despropósito porque pretende usar o próprio sofrimento como matéria de proselitismo político. Porque a senhora pede que se compreendam as determinantes sociais que supostamente fariam um criminoso, considera ter atingido um patamar superior de razão ao de outros que sofrem. É mesmo uma pena que Victor Hugo não possa contestá-la. É mesmo uma pena que Cinthya Moutinho não possa contestá-la.

Lamento o sofrimento da estuprada. Deploro o texto da narradora. Mas abomino as ilações da pensadora. Luíza, no fim das contas, convida as vítimas para uma espécie de rito sacrificial-sociológico do qual se apresenta como bastante procuradora e sacerdotisa. Ela só não consegue explicar por que a maioria dos 50 mil mortos a cada ano no Brasil está fora de sua visão esgarçada, precária e, lamento, cheia de clichês do que seja luta de classes. As famílias dos pobres que morrem teriam muito pouca tolerância para as suas explicações tolas sobre as raízes sociais da violência.

A Folha gosta de polêmicas, como se sabe. Num país cuja inteligência é devastada pelo falso consenso, isso pode ser uma virtude. A questão é saber se qualquer polêmica vale a pena. Desde que se renunciou ao “olho por olho, dente por dente”, tem-se claro que a vítima nunca é um bom juiz. Por alguma razão, a Folha parece também considerar que assim é (daí que muito se fale em não legislar num clima de comoção), a menos que essa vítima pense “a coisa certa”. A estuprada que faz tratado sobre a sociologia da reparação tem tanta autoridade moral, intelectual e ética quanto aquela que pede a pena de morte para seu agressor.

De resto, escolheu-se o pior dos crimes para ilustrar a tese. Fiz uma pesquisa razoavelmente exaustiva e conversei com alguns profissionais que lidam com o tema. Não há uma só especialista com um mínimo de seriedade que associe pobreza a estupro — crime frequente, aí numa perspectiva bem particular, quando homens atuam numa horda: guerra ou ação de gangues. Nesse caso, é preciso escarafunchar as zonas escuras da antropologia. Mas atenção! Encontrar uma explicação para o horror, qualquer que seja ela, não alivia a responsabilidade por uma escolha e o direito da vítima a uma reparação. Não sendo o olho por olho, dente por dente, então é a justiça, dona Luíza, não a vingança. Uma justiça compatível com o agravo.

Ninguém quer se vingar, dona Luíza! Algumas pessoas estão a dizer que uma internação de três anos é muito pouco quando a vítima não pode nem ser grata a seu algoz por lhe ter deixado a vida.

PS – Para encerrar: junto com o artigo de Luíza Pastor, a Folha publica um pequeno texto informando que a esmagadora maioria dos paulistanos é favorável à redução da maioridade penal e que o governador Geraldo Alckmin encaminhou — por intermédio da bancada do PSDB — um projeto que prevê internação de até oito anos para menores infratores (só para crimes hediondos, o que o texto não informa). Dois mais dois são quatro. Luíza, legitimada, então, pelo estupro que sofrera, é contra. A maioria dos paulistanos e o governador, que não foram estuprados, são a favor. Corolário inescapável: ela, embora martirizada, alcançou o pensamento superior; os outros, sem motivos para tanto, só podem estar movidos por vingança — vingança, o texto deixa evidente, contra os pobres. O estupro, então, nesse caso, teria dado a Luíza a licença para julgar e absolver os criminosos, para julgar e condenar as vítimas (querem vingança!), para julgar e condenar a maioria dos paulistanos, para julgar e condenar o próprio governador. Não por acaso, os únicos bandidos verdadeiros de seu texto são os policiais. É das peças mais lamentáveis publicada na imprensa brasileira em qualquer tempo, particularmente ofensiva às mulheres, doravante convidadas a reparar nos sinais exteriores de pobreza de eventuais estupradores. Quase 33 mil toques em duas palavras e um ponto: é asqueroso!

por Reinaldo Azevedo