quarta-feira, 25 de março de 2015

Câmara aplica nova derrota acachapante a Dilma e dá 30 dias para o governo regulamentar lei que já foi sancionada pela presidente. Ou: Essa gestão ainda será dissecada em laboratório

Atenção, leitor! O assunto parece um tanto árido, mas é um excelente emblema desses dias.

Pois é… Às vezes, ter memória pode ser um pouco exasperante. Mas útil. Sobretudo se ela é posta a serviço do leitor. Nesta terça, a Câmara dos Deputados aplicou uma nova derrota ao governo Dilma — ou, para ser mais exato, à presidente Dilma Rousseff em pessoa, o que revela o grau de desarticulação política do governo. A que me refiro? Contra a orientação do Planalto, a Casa aprovou um projeto que dá ao governo um prazo de 30 dias para regulamentar e executar a lei que alivia a dívida de Estados e municípios. O texto foi aprovado por 389 votos a favor e apenas duas abstenções e segue para o Senado. Agora vem a memória.

Sabem o que é o verdadeiramente fabuloso? O PLC (Projeto de Lei Complementar) 99/2013, que muda o indexador e diminui retroativamente a dívida de estados e municípios é, originalmente, de inciativa do Executivo. Sim, leitor, a chefe do Executivo é a presidente Dilma. O relator da proposta na Câmara foi o então líder do PMDB, Eduardo Cunha (RJ), hoje presidente da Casa.

Depois de sólido entendimento celebrado com o governo, ficou estabelecido que a indexação da dívida seja feita pelo IPCA ou pela taxa Selic (o que for menor) mais 4% ao ano, não pelo IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna) mais juros de 6%, 7,5% ou 9% ao ano (a depender do caso), como se faz desde 1997, quando as dívidas foram renegociadas pelo governo federal. A proposta só foi aprovada pelo Senado em novembro do ano passado e sancionada pela presidente. Faz, portanto, quatro meses.

A correção retroativa, explique-se, foi introduzida no texto pelos parlamentares, mas Dilma poderia ter vetado. Por que não o fez? Ao contrário até: acenou com a sua aprovação durante a campanha eleitoral porque, sabem como é…, para obter votos, pode-se prometer qualquer coisa.

O alívio para estados e municípios é gigantesco. Um passivo de R$ 55 bilhões se reduz a R$ 9 bilhões. Quando a cidade de São Paulo renegociou a dívida, ela era de R$ 11 bilhões. Já se pagaram R$ 25 bilhões, mas o saldo é de R$ 62 bilhões. Com o novo indexador, cai para R$ 26 bilhões. Com a nova regra, a cidade do Rio zera o seu estoque, que despenca de R$ 6,2 bilhões para R$ 29 milhões, valor depositado em juízo. O prefeito Eduardo Paes (PMDB) recorreu à Justiça e obteve liminar para fazer o pagamento segundo as novas regras.

Antes que continue, uma observação: embora criticado por muitos, defendi, sim, a renegociação e a redução da dívida — ainda que o prefeito Fernando Haddad, cuja gestão desprezo, possa ser um dos beneficiados. Na verdade, eu faço essa defesa desde 2010, como vocês podem ler aqui. A razão é simples:  se o mecanismo criado 1997 era seguro em face das circunstâncias de então, a sua manutenção é um verdadeiro escândalo. Ora, o Tesouro corrige a dívida desses entes a taxas que já chegaram a 14% no caso dos municípios e a 12,5% no dos Estados, mas empresta dinheiro a apaniguados, por exemplo, por intermédio do BNDES, com juros na casa de 4% a 5%. Faz sentido? Trata-se de uma receita segura para quebrar os endividados.

Trapalhada

Pois bem… Aquilo que a Dilma de novembro de 2014 sancionou, a Dilma de março de 2015 já não podia garantir. Numa resposta ao prefeito do Rio, que recorreu à Justiça, a presidente cometeu a sandice de sair a falar contra a lei que ela própria sancionou. Disse: “Nós estamos fazendo um imenso esforço fiscal. Nós achamos importantíssimo tratar a questão da dívida dos estados. Agora, não podemos fazer essa despesa. Não temos condições de fazer essa despesa. Obviamente, assim que melhorar, a primeira coisa a melhorar, nós teremos todo o interesse em resolver esse problema. Agora, o governo federal não pode dizer para vocês, porque seria uma forma absolutamente inconsequente da nossa parte, que nós temos espaço fiscal para resolver este problema. Estamos dentro da lei tentando resolver essa questão, em acordo com os estados. Até porque isso é problema momentâneo”.

E seus coordenadores políticos, liderados por Aloizio Mercadante, saíram a campo para tentar impedir a aprovação do projeto na Câmara. A receita para a derrota era certa. E foi o que aconteceu. À tarde, numa palestra para empresários, Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, já havia dito que o ajuste fiscal, da forma como está, não passa no Congresso.

O governo Dilma, definitivamente, ainda será matéria de curiosidade científica; ainda será dissecado num laboratório, com a mesma curiosidade com que um entomologista escarafuncha um inseto. Por que diabos a presidente da República defende um ponto de vista que, com certeza absoluta, será esmagado no Congresso, com os votos até de petistas, como aconteceu?

Se Dilma tivesse um coordenador político, eu faria a ele essa pergunta. Mas ela tem nove. Aí eu fico com preguiça. Eduardo Cunha ganhou mais uma. Mas essa, convenham, era fácil demais. Daqui a pouco, tomar o pirulito de uma criança será tarefa mais complexa.


Por Reinaldo Azevedo

segunda-feira, 23 de março de 2015

Desempenho de Dirceu prova que o PT mudou o Brasil: país, agora, é assaltado também pelas novas elites, não só pelas velhas

Informação que veio a público neste fim de semana desenha de maneira clara, insofismável e sem retoques a fuça e a face do patrimonialismo à moda petista. Para conferir especial colorido ao retrato, a personagem central da tela é ninguém menos do que José Dirceu, aquele que foi apontado pelo Ministério Público Federal como chefe da quadrilha do mensalão — um crime pelo qual acabou não sendo condenado pelo Supremo, como se sabe.

Pois bem: Dirceu está de volta ao centro da narrativa. Na semana passada, o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, tornou públicos os dados fornecidos pela Receita Federal sobre a JD Consultoria, a empresa do chefão petista. Sem nenhuma tradição na área, o empreendimento poderia figurar em qualquer lista de maiores e melhores, não é? O Zé conseguiu faturar R$ 29,2 milhões entre 2007 e 2013. Só em 2012, ano em que foi condenado, ganhou R$ 7 milhões; em 2013, ano em que ficou preso, R$ 4,2 milhões. Duvido que presidiário de qualquer outro ramo tenha ganhado tanto dinheiro em atividade lícita ou ilícita. Ele ainda acabará sendo acusado de concorrência desleal…

Segundo informou a Folha no domingo, o empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC Engenharia, confessou que o pagamento que fazia à “consultoria” de José Dirceu era descontado da comissão de 2% que pagava ao esquema criminoso, decorrente de seus contratos com a Petrobras. Outro representante da Camargo Corrêa afirmou que pagava pelos “serviços” do ex-ministro com receio de ser prejudicado nos negócios.

E chego, assim, então, ao ponto que me interessa. O que é o patrimonialismo senão a apropriação ilegal, promovida por uma elite perversa, do bem público, de sorte que os interesses privados, de uma minoria espoliadora, acabam se sobrepondo aos interesses coletivos? O que é o patrimonialismo senão a recusa dos valores republicanos e a negação, na prática, da democracia política?

Não! Isso não é novo por aqui. Há uma sólida literatura política sobre o tema em nosso país e sobre as várias feições que esse patrimonialismo pode assumir: nacionalismo fascistoide, populismo de direita, populismo de esquerda etc.

Em 2003, o assalto ao bem público para privilegiar uma casta ganhou uma nova feição. O patrimonialismo então se reciclava e expropriava, vejam a ousadia, também o discurso da reparação social. Isto mesmo: o modelo petista não assaltou apenas os cofres públicos. Roubou também o discurso da justiça social.

Sim, antes da chegada do PT ao poder, havia o coronelismo nordestino, ainda que com novo verniz. E continuou a existir depois do PT. Havia alguns nababos da indústria que se beneficiavam de protecionismos ou linhas especiais de crédito. Continuaram a existir depois do PT. Havia uns tantos medalhões do mercado financeiro que sempre souberam negociar o binômio estabilidade-títulos públicos. Continuaram a existir depois do PT.

O PT dito de esquerda soube negociar e compor com o velho patrimonialismo com impressionante destreza, mas tinha a sua própria agenda. Soube ser generoso com o velho sistema, mas começou a impor o novo patrimonialismo, que consiste em aquinhoar o aparelho partidário e suas franjas com, digamos, uma “taxa de sucesso”. É assim que a corrupção se generalizou e se tornou um método. É assim que empreiteiros — de perfil político certamente conservador — se tornaram os intermediários do assalto ao estado promovido por um partido que se diz de esquerda.

E como é que Dirceu entra nessa história? Tanto no velho como no novo patrimonialismo, há espaço para esquemas individualizados, não é? Que Dirceu fosse uma potência no ramo da consultoria, isso VEJA já havia evidenciado em agosto de 2011, quando revelou que, mesmo processado pelo STF, ele mantinha em Brasília uma espécie de governo paralelo.

O centro clandestino de poder ocupava um quarto no hotel Naoum. A revista informou, então, que, em apenas três dias, entre 6 e 8 de julho de 2011, o homem  recebeu uma penca de poderosos. Prestem atenção a alguns nomes da lista de notáveis que foram beijar a mão do Zé, com os cargos que exerciam então: Fernando Pimentel, ministro da Indústria e Comércio; José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras; e os senadores Walter Pinheiro (PT-BA); Lindbergh Farias (PT-RJ); Delcídio Amaral (PT-MS) e Eduardo Braga (PMDB-AM). Naquele ano, sua consultoria lhe rendeu R$ 4,7 milhões. No ano seguinte, no seu melhor, R$ 7 milhões.

O PT não prometeu mudar o Brasil? Mudou, ora essa! Antes, só as ditas elites tradicionais assaltavam o país. Com a chegada do partido ao poder, esse assalto passou a ser dividido com as novas elites.

Por Reinaldo Azevedo