Atenção,
leitor! O assunto parece um tanto árido, mas é um excelente emblema desses
dias.
Pois
é… Às vezes, ter memória pode ser um pouco exasperante. Mas útil. Sobretudo se
ela é posta a serviço do leitor. Nesta terça, a Câmara dos Deputados aplicou
uma nova derrota ao governo Dilma — ou, para ser mais exato, à presidente Dilma
Rousseff em pessoa, o que revela o grau de desarticulação política do governo.
A que me refiro? Contra a orientação do Planalto, a Casa aprovou um projeto que
dá ao governo um prazo de 30 dias para regulamentar e executar a lei que alivia
a dívida de Estados e municípios. O texto foi aprovado por 389 votos a favor e
apenas duas abstenções e segue para o Senado. Agora vem a memória.
Sabem
o que é o verdadeiramente fabuloso? O PLC (Projeto de Lei Complementar)
99/2013, que muda o indexador e diminui retroativamente a dívida de estados e
municípios é, originalmente, de inciativa do Executivo. Sim, leitor, a chefe do
Executivo é a presidente Dilma. O relator da proposta na Câmara foi o então
líder do PMDB, Eduardo Cunha (RJ), hoje presidente da Casa.
Depois
de sólido entendimento celebrado com o governo, ficou estabelecido que a
indexação da dívida seja feita pelo IPCA ou pela taxa Selic (o que for menor)
mais 4% ao ano, não pelo IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade
Interna) mais juros de 6%, 7,5% ou 9% ao ano (a depender do caso), como se faz
desde 1997, quando as dívidas foram renegociadas pelo governo federal. A
proposta só foi aprovada pelo Senado em novembro do ano passado e sancionada
pela presidente. Faz, portanto, quatro meses.
A
correção retroativa, explique-se, foi introduzida no texto pelos parlamentares,
mas Dilma poderia ter vetado. Por que não o fez? Ao contrário até: acenou com a
sua aprovação durante a campanha eleitoral porque, sabem como é…, para obter
votos, pode-se prometer qualquer coisa.
O
alívio para estados e municípios é gigantesco. Um passivo de R$ 55 bilhões se
reduz a R$ 9 bilhões. Quando a cidade de São Paulo renegociou a dívida, ela era
de R$ 11 bilhões. Já se pagaram R$ 25 bilhões, mas o saldo é de R$ 62 bilhões.
Com o novo indexador, cai para R$ 26 bilhões. Com a nova regra, a cidade do Rio
zera o seu estoque, que despenca de R$ 6,2 bilhões para R$ 29 milhões, valor
depositado em juízo. O prefeito Eduardo Paes (PMDB) recorreu à Justiça e obteve
liminar para fazer o pagamento segundo as novas regras.
Antes
que continue, uma observação: embora criticado por muitos, defendi, sim, a
renegociação e a redução da dívida — ainda que o prefeito Fernando Haddad, cuja
gestão desprezo, possa ser um dos beneficiados. Na verdade, eu faço essa defesa
desde 2010, como vocês podem ler aqui. A razão é simples: se o
mecanismo criado 1997 era seguro em face das circunstâncias de então, a sua
manutenção é um verdadeiro escândalo. Ora, o Tesouro corrige a dívida desses
entes a taxas que já chegaram a 14% no caso dos municípios e a 12,5% no dos Estados,
mas empresta dinheiro a apaniguados, por exemplo, por intermédio do BNDES, com
juros na casa de 4% a 5%. Faz sentido? Trata-se de uma receita segura para
quebrar os endividados.
Trapalhada
Pois bem… Aquilo que a Dilma de novembro de 2014 sancionou, a Dilma de março de 2015 já não podia garantir. Numa resposta ao prefeito do Rio, que recorreu à Justiça, a presidente cometeu a sandice de sair a falar contra a lei que ela própria sancionou. Disse: “Nós estamos fazendo um imenso esforço fiscal. Nós achamos importantíssimo tratar a questão da dívida dos estados. Agora, não podemos fazer essa despesa. Não temos condições de fazer essa despesa. Obviamente, assim que melhorar, a primeira coisa a melhorar, nós teremos todo o interesse em resolver esse problema. Agora, o governo federal não pode dizer para vocês, porque seria uma forma absolutamente inconsequente da nossa parte, que nós temos espaço fiscal para resolver este problema. Estamos dentro da lei tentando resolver essa questão, em acordo com os estados. Até porque isso é problema momentâneo”.
E
seus coordenadores políticos, liderados por Aloizio Mercadante, saíram a campo
para tentar impedir a aprovação do projeto na Câmara. A receita para a derrota
era certa. E foi o que aconteceu. À tarde, numa palestra para empresários,
Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, já havia dito que o ajuste
fiscal, da forma como está, não passa no Congresso.
O
governo Dilma, definitivamente, ainda será matéria de curiosidade científica;
ainda será dissecado num laboratório, com a mesma curiosidade com que um
entomologista escarafuncha um inseto. Por que diabos a presidente da República
defende um ponto de vista que, com certeza absoluta, será esmagado no
Congresso, com os votos até de petistas, como aconteceu?
Se
Dilma tivesse um coordenador político, eu faria a ele essa pergunta. Mas ela
tem nove. Aí eu fico com preguiça. Eduardo Cunha ganhou mais uma. Mas essa,
convenham, era fácil demais. Daqui a pouco, tomar o pirulito de uma criança
será tarefa mais complexa.
Por Reinaldo Azevedo