Josias de Souza
Digamos
que você se chama Joaquim Barbosa e vive num lugar chamado Brasil. Você é uma
pessoa inteligente. Conhece o país em que vive de baixo para cima. Desenvolveu
suas teses sobre ele à medida que escalou a pirâmide. Vem de um tempo em que o
filho de um pedreiro com uma dona de casa ainda encontrava ensino de boa
qualidade na escola pública.
Digamos que você
resolve ser advogado. Movido pelo desejo de mudar as coisas, você vira
procurador da República. Enverniza o currículo no estrangeiro. Súbito, do nada,
surge um emissário do presidente do seu país e diz que você será ministro da
Suprema Corte. Você suspeita que sua negra figura está sendo usada como peça de
marketing. Mas sabe que, empossado, poderá aplicar a lei como quiser, sem
barganhas ou hesitações. Você aceita.
Digamos que o acaso
e o computador central da Suprema Corte joguem no seu colo o processo de um
escândalo de corrupção jamais visto no seu país. Como um Getúlio às avessas, o
partido político do presidente deixara tragicamente a história para cair na
vida. Fizera isso sabendo que, no seu país, ninguém é castigado acima de um
certo nível de poder e renda. Bêbado de entusiasmo, você decide provar o
contrário.
Digamos que, como relator, você resolva traduzir do juridiquês para o português um caso que parecia
intrincado. Qual um Dias Gomes de toga, você percebe que, dividido em
capítulos, o processo vai à TV Justiça no formato de uma novela —o capítulo
anterior antecipando as emoções do capítulo subsequente. Sua tática aproxima a
plateia do plenário da Suprema Corte, inibindo manobras imobilistas.
Digamos que a
maioria dos seus patrícios acredita que será assada uma pizza. Mas você, aos
trancos e solavancos, convence a maioria dos membros do tribunal a condenar 24
pessoas. O calendário conspira a seu favor, guindando-o à presidência da
Suprema Corte em condições de enviar para a cadeia, em pleno feriado da
Proclamação da República, 19 condenados —entre eles ex-dirigentes do partido do
presidente do seu país.
Digamos que você se
torna uma pessoa tão popular que seu nome passa a figurar nas pesquisas
presidenciais. Simultaneamente, você fareja uma mudança na correlação de forças
do plenário da Suprema Corte. Para piorar, os casos de corrupção continuam
escalando as manchetes em ritmo industrial. Você deixará a poltrona de
presidente do tribunal em poucos meses. Passará o bastão para um colega que
você já chamou de chicaneiro.
Digamos que você
está na Suprema Corte há 11 anos. Ainda moço, com 59, você dispõe de tempo e
prestígio para continuar fazendo e acontecendo. Só terá de vestir o pijama em
2024, depois de soprar as 70 velinhas. Mas você, meio angustiado, atravessa um
desses momentos em que a pessoa precisa decidir o que pretende fazer da vida.
Digamos que você está diante de uma bifurcação, sem saber que
caminho tomar. Voltar ao plenário e continuar lewandowski aquela vidinha repleta de causas
banais ou pendurar a toga no auge, como um Pelé da magistratura? Mergulhar no
monturo de processos insignificantes à espera do surgimento de outro grande
caso ou aposentar-se precocemente?
Digamos que você
pensa na importância de manter a cruzada moral e ética. Mas não consegue
reprimir uma espécie de sorriso interior. Você sabe que o seu país precisa de
mais moral e ética. Mas toda vez que você pensa nisso, uma voz no fundo da sua
consciência aconselha: peça aposentadoria, continue embolsando vencimentos
integrais e vá gozar a vida. Você acaba percebendo que não é de ferro.
Digamos que, no
último dia de trabalho, os repórteres o cercam, ávidos por uma declaração que
sirva de exemplo para o seu país. E você: “Saio absolutamente tranquilo, como
eu disse, com a alma leve, aquilo que é fundamental para mim, o cumprimento do
dever. [...] É importante que o brasileiro se conscientize da importância, da
fundamentalidade, da centralidade da obrigação de todos cumprirem as normas,
ouvirem a lei, cumprirem a Constituição. Esse é o norte principal da minha
atuação. Pouca condescendência com desvios, com essa inclinação natural a contornar
os ditames da lei, da Constituição.''
Digamos que aquela
mesma voz que veio do fundo da sua consciência para dar conselhos volta para
lhe cochichar, rente aos tímpanos: Alma leve? Dever cumprido? Ora, francamente.
Não exagere, meu rapaz. Você acaba de desprezar cinco meses de presidência do
tribunal. Você jogou no lixo uma década de exercício da magistratura na mais
alta Corte do país, sonho de todo advogado.
Digamos que você
chama o seu gesto de abnegação, de altruísmo, de desprendimento. Mas sabe que
qualquer vocábulo que você escolha soará apenas como outro nome para deserção.
Um pedaço da plateia que o admira terá toda razão em fazer uma careta de
desagrado e perguntar para os seus botões: que foi feito daquele ardente desejo
de servir o povo? Em que momento as aspirações pessoais prevaleceram sobre a
causa do interesse público?
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