Acabou
a comida na residência oficial do presidente do Senado. A despensa e a
geladeira esvaziaram depois que foi cancelada, há 15 dias, uma licitação
superfaturada para a aquisição de mantimentos. A lista de compras incluía 25
quilos de camarão vermelho grande, 20 quilos de frutos do mar e 1,7 tonelada de
33 tipos de carnes. Coisa de R$ 98 mil.
A repórter Maria Lima conta que
Renan Calheiros e seus familiares viram-se compelidos a matar a fome fora de
casa. Ouvida, a assessoria da presidência do Senado informou: “Renan está
almoçando no restaurante do Senado, pagando do próprio bolso.” Assombro! “Sua
esposa também está comendo fora.” Espanto!! “A licitação vai ser redimensionada
para eliminar itens superfaturados e supérfluos.” Estupefação!!!
“Também
vai haver corte na quantidade de camarão e outros itens.” Hã, hã… “A ideia é
cortar mais da metade do custo antes previsto e adequar as quantidades apenas
para o presidente e sua esposa.” Ah, tá! “Os servidores não mais farão suas
refeições no local, porque recebem ticket alimentação.” Hummm…
Solidário,
o estômago decidiu divulgar uma carta aberta ao presidente do Senado. O texto
vai abaixo:
Caríssimo
senador,
O
senhor não me conhece. Permita que me apresente. Moro onde olho nenhum me
alcança, no ermo das entranhas. Sou ferida exposta que não se vê. Sou espaço
baldio entre o esôfago e o duodeno.
Trago das origens
uma certa vocação
para a tragédia. Não deve ser
por outra razão que venho do grego: ‘stómachos’.
Se
pudesse dar entrevista, resumiria assim o oco de minha existência: ‘É dura a
vida de víscera.’
Às
vezes, presidente, invejo o coração
que, quando sofre, é
de amor. Eu jamais tive tempo para sentimentos abstratos. Perdoe-me o
pragmatismo estomacal. Mas só tenho apreço pelo concreto: o feijão, o arroz, a
carne…
Meu
projeto de vida sempre foi arranjar comida.
Danço no ritmo da emergência.
Meu
mundo cabe no intervalo entre uma refeição
e outra. Meu relógio, caprichoso, só tem tempo para certas horas: a hora do
café, a hora do almoço, a hora do jantar… Eu entendo o seu drama, senador.
Sem
comida, meu relógio ficou louco. Passou a anunciar a chegada de cada novo
segundo aos gritos.
Nunca tive grandes ambições. Não
quero glória. Tampouco desejo um mandato de senador. Sonho com a solidariedade
de uma cesta básica, a compaixão de um grão escorregando faringe abaixo.
Ardem-me
as paredes, bombardeadas por jatos de suco gástrico. Mas já não sofro, senador.
Sem alimento, encontrei a paz na melancolia da fome. A privação levou-me à
ante-sala de outra esfera.
Consola-me,
senador, a certeza de que sua rotina alimentar logo estará normalizada. Quanto a mim…
Temente a Deus, sei que Ele há de acomodar no meu céu uma
cozinha como a da residência oficial da presidência do Senado, tão farta que me
propicie uma fome de senador, dessas que a gente resolve simplesmente abrindo a
geladeira. Força, Excelência!”
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