A
Justiça de São Paulo, por intermédio do desembargador Ivan Marques, da 2ª
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ), negou o recurso que garantia a
decretação imediata da prisão preventiva de 175 pessoas denunciadas pelo
Ministério Público como membros do PCC. Até que a questão possa ser examinada
de novo, podem se passar alguns meses. Nas redes sociais, a Justiça está
levando muitas bordoadas. As associações de juízes, todas de caráter sindical,
reagiram. Já volto ao ponto. Antes, algumas considerações.
Pode haver gente que repudie
tanto quanto repudio a ação populista de juízes; mais do que eu, acho difícil.
Nestes dois últimos dias, por exemplo, afirmei que a tentação de ceder ao
clamor não exatamente das ruas, mas de minorias organizadas, havia chegado ao
STF. Censurei duramente o ministro Luiz Fux por ter concedido uma liminar
contra a suspensão do pagamento de professores grevistas da rede estadual do
Rio. Também lamentei que uma juíza tivesse declarado sem efeito a sessão da
Câmara de Vereadores que aprovou o plano de carreira dos docentes cariocas —
liminar já cassada. Reagi com estupefação ao meritíssimo que negou liminar de
reintegração de posse da Reitoria da USP, invadida a marretadas por vândalos
disfarçados de alunos. Estudante usa caneta. Para escrever, não para furar o
olho da legalidade democrática.
São
apenas três exemplos de uma série de decisões polêmicas, que me parecem
tendentes a ajustar as leis ao berreiro da militância. E, ainda que isso me
faça um conservador empedernido (que bom!), acho que, na democracia, o berreiro
militante é que tem de se ajustar à lei — se não for boa, que se organizem para
mudá-la. Muito bem! Dito isso, faço agora uma distinção fundamental: uma
coisa é juiz ceder a pressões, o que não deve fazer; outra, muito distinta, é
achar que as pressões, exercidas nos marcos do regime democrático, são
inaceitáveis. Aí não! Aí não dá! Aí os senhores juízes hão de me perdoar, mas
preciso lhes fazer uma recomendação elementar: acostumem-se a viver numa
democracia. Antes de voltar ao ponto inicial, uma segunda consideração que me
parece relevante.
Confesso que tenho certa
dificuldade de admitir que um juiz possa pertencer a um sindicato — ainda que
esse ente venha na forma de uma associação. O Judiciário tem, na prática, a última
palavra. Os meritíssimos têm de ancorar as suas decisões em códigos legais, mas
sabemos o que pode a largueza interpretativa. Há sempre um quê de
necessariamente discricionário no voto ou na decisão de um juiz, não é mesmo? O
direito não é uma ciência exata. Quando um juiz integra uma associação, isso me
causa um incômodo intelectual, ainda que possa entender seus motivos. Como pode
ser um “coletivo” quem, por natureza, deve atender apenas ao apelo da própria
consciência — sempre tendo as leis como guia? Mas as associações existem, estão
por aí aos montes. Há até uma que se intitula “Juízes pela Democracia” — como
se pudesse haver uma pela ditadura…
De
volta ao PCC
Leio no Estadão:
“As reiteradas
decisões do Judiciário de negar a decretação preventiva dos acusados flagrados
na megainvestigação que durou três anos e meio e mapeou o crime organizado em
São Paulo abriram uma crise entre os juízes e os promotores paulistas. Cerca de
200 juízes, de diversas comarcas do Estado, assinaram uma nota de apoio ao juiz
Thomaz Correia Farqui, da 1ª Vara de Presidente Venceslau. Farqui foi o juiz
que rejeitou o pedido de prisão. Após a publicação do caso, o juiz e seus
familiares passaram a ser hostilizados nas redes sociais. Promotores de Justiça
criticaram a decisão do magistrado.”
Pois bem. A Associação Paulista
dos Magistrados (Apamagis) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
divulgaram notas de protesto em defesa do juiz. Também o presidente da
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Nelson Calandra, se manifestou:
“A AMB repudia quaisquer atitudes tendentes a causar clamor social para coagir
ou constranger um magistrado no seu livre convencimento, com tentativas de
desacreditar decisão judicial fundamentada e estritamente técnica, proferida no
exercício da independência funcional do Magistrado”.
Pois é…
As notas de repúdio são
dirigidas, num primeiro momento, ao Ministério Público Estadual. Alguns de seus
membros expressaram inconformismo, mas sem muito alarde. O troço pegou fogo
mesmo foi nas redes sociais. Há coisas que as pessoas comuns — as que acordam
cedo todos os dias, trabalham, recolhem impostos e pretendem voltar em
segurança para as suas respectivas casas — não entendem. Por que se recusa, por
exemplo, uma operação de busca e apreensão na casa de alguém flagrado ao
telefone operando para o partido do crime? Deve haver alguma razão técnica para
isso. Mas sabemos que nessa ciência não exata do direito, pode haver “motivo
técnico” tanto para uma coisa como o seu oposto. Assim, contra o crime organizado,
entendo que o dever moral é tomar a decisão que proteja a sociedade. O caso dos
embargos infringentes deixou isso tudo muito claro.
As manifestações dessa pletora
de associações de juízes não se voltam apenas contra o inconformismo de
promotores. Elas parecem querer esconjurar também os protestos das pessoas nas
redes sociais. Ai não dá! Há 50 mil homicídios por ano no Brasil, senhores
juízes. O crime dá mostras de que está sempre muitos passos à frente da polícia
e da própria Justiça — que é, sim, lenta. É normal e, mais do que isso,
desejável que os brasileiros manifestem o seu inconformismo.
Não endosso, é evidente,
pressões e fulanização. Se o juiz foi hostilizado, é lamentável. Ocorre que a
organização criminosa está aí, tentando ditar ordens para as autoridade e
fazendo ameaças. Ainda que juízes não tenham sido eleitos pelo povo, também têm
um caráter representativo, não é? Eles existem para que a gente não tenha de
resolver tudo no braço.
Eu lamentei, por exemplo,
profundamente o conteúdo do voto de Celso de Mello, decano do Supremo, no caso
dos embargos infringentes. Mas aquela é a maneira como ele entende que deva ser
exercido o aparato legal, e não há o que fazer a respeito. O que repudiei no
seu voto foi menos o conteúdo do que o tom. Celso de Mello chamou de “pressão
inaceitável” o que era nada além de direito democrático: discordar da decisão
de um juiz. Nas democracias, decisões judiciais têm de ser cumpridas. Mas só as
ditaduras proíbem que sejam debatidas. Ou por outra: no regime democrático,
decisão judicial se cumpre e se discute.
Em vez de se perderem em
bate-bocas infrutíferos, as associações de juízes poderiam ajudar a esclarecer
onde exatamente está o defeito da denúncia dos promotores, que impede que se
decrete a prisão preventiva dos que foram acusados de pertencer ao PCC. A
investigação está malfeita? Houve algum erro formal incontornável? As
evidências colhidas impedem que se aplique esse recurso? O mal de entidades de caráter sindical é que a “luta”
sempre assume uma perspectiva corporativista, deixando de lado o principal. As
evidências que vieram a público contra muitos denunciados parecem bastante
fortes. Então não são? Isso tudo é coisa de leigos? Devemos entender de modo
diferente aqueles diálogos ao telefone? Qual é o ponto? Não há mal nenhum no
fato de a sociedade querer entender. Ou há?
Juiz não tem de ser satanizado,
demonizado, fulanizado, pressionado, nada disso… Mas que os juízes
sindicalistas tenham em mente que, na democracia, a expressão do inconformismo
é só o exercício de um direito. Os meritíssimos são e devem ser livres para
julgar. Mas o indivíduo, que paga a conta e em nome do qual eles exercem a sua
função, não só pode como tem a obrigação de dizer o que pensa.
Descabido, nesse caso, é
censurar uma população acuada por 50 mil homicídios por ano.
Por Reinaldo Azevedo
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