O
sociólogo Emir Sader, emérito torturador da língua portuguesa, é organizador de
um Livro de artigos intitulado “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil:
Lula e Dilma”. Não li os textos, de vários autores (dados alguns nomes, presumo
o que vai lá). O título é coisa de beócios. Para que pudesse haver esse
“depois”, forçoso seria que tivesse havido o “antes”. Como jamais houve
liberalismo propriamente dito no país — o “neoliberalismo” é apenas uma tolice
teórica, que nunca teve existência real —, a, digamos assim, “obra” já nasce de
uma empulhação intelectual. Pode até ser que haja no miolo, o que duvido, um
artigo ou outro que juntem lé com lé, cré com cré, o que não altera a natureza
do trabalho. Quem foi neoliberal? Fernando Henrique? Porque privatizou
meia-dúzia de estatais? A privatização de aeroportos e estradas promovida por
Dilma Rousseff — e ela o fez mal e tardiamente — é o quê? Expressão do
socialismo? Do “neonacional-desenvolvimentismo”? Sader se orienta no mundo das
ideias com a mesma elegância com que se ocupa da sintaxe, da ortografia e do
estilo.
Na
terça-feira passada, um evento no Centro Cultural São Paulo marcou o lançamento
do livro. Luiz Inácio Lula da Silva (quando Sader está no mesmo texto, eu me
nego a chamar Lula de “apedeuta”!) e Marilena Chaui estavam lá para debater a
obra. Foi nesse encontro que a professora de filosofia da USP mergulhou, sem
medo de ser e de parecer ridícula, na vigarice intelectual, na empulhação e na
pilantragem teórica. Se eu não achasse que estamos diante de um cárter típico,
seria tentado a tipificar uma patologia.
Trata-se
de uma soma estupefaciente de bobagens — sim, há método em tudo isso — de que
me ocupo daqui a pouco, embora Marilena não merecesse muito mais do que farei
neste parágrafo e no próximo: pegá-la no pulo. Os livros didáticos e
paradidáticos de filosofia desta senhora são comprados pelo MEC e distribuídos
a alunos do Brasil inteiro. Quanto dinheiro isso rende à nossa socialista
retórica, que só se tornou uma radical de verdade quando ser radical já não
oferecia nenhum perigo? Marilena é professora da USP desde 1967. É só no começo
dos anos 80, com o processo de abertura em curso — lembrem-se que, em 1982,
realizaram-se eleições diretas para governos de Estado —, que se ouve falar da
tal Chaui. E não! Ela não exercia ainda esse esquerdismo xucro, mixuruca,
bronco. Seu negócio era falar de Merleau-Ponty, dos frankfurtianos, de
Espinoza, confrontando a ortodoxia marxista… À medida que foi se embrenhando na
luta partidária, tornou-se uma proselitista vulgar, “intelectual” demais para
ser um quadro dirigente do partido, partidária demais para ser considerada uma
intelectual — cuja tarefa principal, sim, senhores!, é pensar com liberdade.
Marilena
poderia revelar à classe média que ela odeia quanto dinheiro ganhou com os seus
livros didáticos e que nobre destino deu à grana. E acreditem: não é pouco.
Autores que têm a ventura de ser incluídos na lista do MEC podem ficar ricos.
Socialista que é, ortodoxa mesmo!, impiedosa com a “classe média”, não posso
crer que ela tenha se conformado com os fundamentos reacionários do processo de
herança, enriquecendo filhos e netos. O dinheiro amealhado deve ter sido doado
a alguma entidade revolucionária, a algum sindicato, a alguma ONG que lute
contra as desigualdades. Não posso crer que Marilena se conforme em transformar
aquela bufunfa em consumo, viagens ou bens imóveis.
Pilantragem
intelectual
Vamos ver. Foi o PT quem mais se beneficiou politicamente com a suposta existência da tal “nova classe média”, conceito que já ironizei aqui, mas por motivos diversos dos da destrambelhada que fala acima. A rigor, essa é uma criação da marquetagem partidária.
Inventou-se
uma tal classe média que já corresponderia a 54% da população brasileira. E que
classe é essa? Segundo a SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), são as
famílias com renda per capita, atenção!, entre R$ 300 e R$ 1.000. Um casal cujo
marido ganhe o salário mínimo (R$ 678) — na hipótese de a mulher não ter
emprego — já é “classe média” — no caso, baixa classe média (com renda entre R$
300 e R$ 440). Se ela também trabalhar, recebendo igualmente o mínimo, aí os
dois já saltarão, acreditem, para o que a SAE considera “alta classe média”
(renda per capita entre R$ 640 e R$ 1.020). Contem-me aqui, leitores, como vive
e onde mora quem tem uma renda per capita de R$ 640? O aluguel de um único
cômodo na periferia mais precária não sai por menos de R$ 250… Assim como
decertou que a maioria dos brasileiros está na classe média, o governo petista
está preses a decretar o fim da miséria — governo, insista-se, de que Marilena
é mero esbirro.
Logo,
à diferença do que sugere a sem-remédio que fala no vídeo, a “nova classe
média” não é uma invenção da “direita”, dos “conservadores” e dos
“reacionários”, que ela também odeia, mas do lulo-petismo, que ela tanto adora.
Confusão
Marilena
faz uma confusão estúpida entre a separação das “classes” por renda e o
conceito marxista de “classe”. A primeira é só uma divisão estabelecida segundo
faixa de renda e padrão de consumo. Não é nem nunca foi uma abordagem política.
Assim, a sua diatribe segundo a qual a “nova classe média” seria, na verdade,
“classe trabalhadora” é manifestação da mais alvar burrice. Ora, um operário
especializado que ganhe R$ 5 mil deve ser tão “trabalhador” quanto outro que
receba o salário mínimo. Há, no que concerne a renda e consumo, diferenças
importantes entre ambos, não?, embora Marilena certamente sonhasse em ver os
dois irmanados no mesmo projeto socialista. E isso explica o seu “ódio” — que,
no fundo, é ódio de sua própria falência como intelectual.
O
ódio
A forma como Marilena se dirige à plateia reproduz, acreditem, o método que emprega em suas aulas. Sei porque já vi. Ela busca, nas suas exposições, o momento da apoteose, do aplauso. Depois de ter feito uma salada entre “classe social”, segundo a visão marxista, e uma mera divisão segundo faixa de renda, ela mesma pergunta:
“E
por que é que eu defendo esse ponto de vista?”
Hábil
manipuladora de plateias, treinada nas salas de aula para fazer com que seus
próprios preconceitos pareçam pensamentos e para confortar a ignorância
daqueles que a ouvem embevecidos, ela ainda criou um certo suspense,
descartando respostas que seriam óbvias:
“Não é só por razões teóricas e políticas.”
SUSPENSE!
Nesse
momento, até o público presente, que estava lá para aplaudi-la, pouco
importando a bobagem que dissesse, deve ter ficado à espera de um aporte
teórico novo ou de uma chave que abrisse as portas da compreensão. Afinal,
estavam diante de uma das mais incensadas professoras de filosofia do país, um
verdadeiro mito da universidade nos tempos da barbárie intelectual petista. Se
as restrições que fazia ali não estavam fundadas nem na teoria nem na política,
o mais provável é que se estivesse prestes a ouvir uma revelação. E Marilena,
ao menos para os padrões da academia, não decepcionou. Compareceu com uma
categoria de pensamento nova.
“É
porque eu odeio a classe média. A classe média é um atraso de vida. A classe
média é a estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante,
petulante, arrogante, terrorista. É uma coisa fora do comum a classe média (…)
A classe média é a uma abominação política porque ela é fascista. Ela é uma
abominação ética porque ela é violenta. E ela é uma abominação cognitiva porque
ela é ignorante”.
Aplausos
e risos
Sua teatralidade bucéfala lhe rendeu aplausos entusiasmados. Não há nada mais degradante do que levar uma plateia de idiotas a rir de si mesma na suposição de que idiotas são os outros. Afinal de contas, a oradora e aqueles que a aplaudiam são o quê? Pobres? Marxistas revolucionários? Ah, mas aí vem o truque principal dos vigaristas intelectuais que ouvem e da vigarista intelectual que fala.
É
certo que operários não são. É certo que são da “classe média”, só que se
distinguiriam daqueles a quem “abominam” porque supostamente dotados de uma
consciência superior. O filho revolucionário do banqueiro, nessa perspectiva,
não teria o menor pudor de chamar de “classe-média reacionário” o gerente do
banco do pai — enquanto, como diria Fernando Pessoa, “mordomos invisíveis
administram a casa”.
Marilena
teme que um trabalhador de classe média perca o seu natural pendor
revolucionário, como se o natural pendor revolucionário dos trabalhadores não
fosse, no fim das contas, uma ilusão de intelectuais de… classe média! No
fundo, Lula e Dilma, celebrados no livro que reuniu a turma, evidenciam a
falência do pensamento da sedizente filósofa. O modelo petista está ancorado na
expansão do consumo, e Marilena acha profundamente reacionário que alguém possa
se interessar mais por uma geladeira nova do que por suas ideias abstratas de
justiça. É que, quase sem exceção, os que fomentam ideias abstratas de justiça
já têm geladeira nova.
Lula
estava presente. Consta que riu, com a mão cobrindo o rosto. Teria dito depois
que, agora que é de classe média, começam a falar mal da dita-cuja. As bobagens
de Marilena Chaui não são irrelevantes. Servem para criar a mística de que o PT
ainda é um partido de pendor revolucionário — ainda que a revolução possível.
Besteira! O que ele é, sim, é um partido autoritário, que não é avesso, se as
condições forem favoráveis, à violência institucional. Está em curso, por
exemplo, a pregação em favor do controle da mídia e do controle do Judiciário.
Marilena, com sua picaretagem teórica e intelectual, faz crer que esses são
desígnios da progressista classe operária.
Achei
que essa senhora, a quem voltarei mais tarde, já tinha chegado ao fundo do poço
durante a campanha à Prefeitura, no ano passado. Ainda não! Ela demonstrou que
seu abismo intelectual não tem fim. Eu não odeio Marilena. Chego a sentir pena.
Deve ser muito triste chegar a essa idade carente desse tipo de aplauso. Em vez
da serenidade madura que instrui, a irresponsabilidade primitiva que
desinforma. Pena, sim! Menos de sua conta bancária.
Por Reinaldo Azevedo
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