Em
votação secreta, a Câmara dos Deputados manteve o mandato do
deputado-presidiário Natan Donadon (sem partido-RO). Houve uma maioria de votos
em favor da cassação — 233 a 131, com 41 abstenções —, mas eram necessários 257
votos, a metade mais um dos 513 deputados. Nada menos de 108 se ausentaram. À
parte problemas de força maior (saúde ou algo assim), são ainda mais covardes
do que os que votaram ou contra ou se abstiveram. Saiba, leitor, que, em
situações assim, para que a sem-vergonhice seja diluída, as tarefas são
divididas: uns tantos votam contra, alguns outros se abstêm, e outa parcela não
vota. Assim, um resultado meticulosamente planejado, que afronta o bom senso e
a decência, fica parecendo obra do acaso. Não é corriqueiro que 21% dos
deputados faltem a uma sessão com essa importância. Teori Zavascki, Roberto
Barroso, Dias Toffolli, Carmen Lúcia, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, todos
ministros do Supremo, devem estar orgulhosos. Viram o exercício prático de uma
tese acalentada pelos seis. Viram nascer o Bebê de Rosemary, por cuja
paternidade (e maternidade) respondem. É num monstrengo como esse que pode
resultar o seu notório saber jurídico. Já chego lá e explico por que evoquei o
nome dos ministros. Vamos a esse caso em particular.
Por
ocasião da condenação de Donadon, o tribunal não se pronunciou sobre o seu
mandato, e a questão foi remetida para a Câmara — contra, parece-me óbvio, o
que dispõem a própria Constituição e o Código Penal (já chego lá). No
julgamento do mensalão, o STF procurou corrigir essa falha.
A
manutenção do mandato de Donadon começou a ser tramada na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara. Alertei aqui para o risco de se produzir esse
resultado absurdo num post do dia 14. O deputado tucano Jutahy Jr.
apresentou um relatório alternativo ao do relator do caso, o deputado Sérgio
Zveiter (PSD-RJ), que abria a possibilidade de livrar a cara do agora
deputado-presidiário.
Por
que? Vocês terão de acompanhar uma argumentação que foi explicitada neste blog
muitas vezes. Mas é importante porque será preciso chamar às falas aquela
meia-dúzia de togados. O “x” da questão está no Artigo 55 da Constituição, que
segue em azul, com destaque para os trechos relevantes para o caso.
Art.
55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
O
roteiro da indecência
Muito bem. Numa leitura possível (mas absurda para quem pretende lidar com a lógica e o bom senso), que constitui o que chamo de “roteiro da indecência”, cabe aplicar o §2º do artigo (leiam acima). Como Donadon “sofreu uma condenação criminal em sentença transitada em julgado” (Inciso VI), então seria preciso“decidir a perda do mandato por voto secreto e maioria absoluta” na Câmara . Sim, em seu relatório, Sveiter pediu a cassação, mas o fez com base nessa argumentação. Estava, na prática, começando a livrar a cara de Donadon, embora parecesse fazer o contrário.
O
deputado Jutahy Jr. apresentou um relatório em separado, alternativo, com outra
argumentação — tantas vezes exposta neste blog e que, na prática, saiu
vitoriosa no STF (5 a 4) no julgamento dos deputados mensaleiros. Segundo esse
outro ponto de vista, muito mais sólido e assentado também nos Artigos 14 e 15
da Constituição (além do 55) e no Artigo 92 do Código Penal, há que se
aplicar não o §2º do Artigo 55 da Constituição, mas §3º, aquele que
estabelece que basta à Mesa da Câmara fazer um ato declaratório porque a
condenação criminal — em crimes como o de Donadon e dos mensaleiros — já
implica a perda automática do mandato, uma vez que o parlamentar perdeu os
direitos políticos (Inciso IV). Logo, não é necessário fazer uma votação.
Vejamos.
O
roteiro da decência
Reza o Artigo 15 da Constituição:
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
(…)
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.
Note,
leitor. A condenação criminal transitada em julgado implica a perda dos
direitos políticos, certo? Certo!
Perdidos
os direitos políticos, então estamos tratando do Inciso IV daquele Artigo 55. E
para o Inciso IV, não é o plenário que decide, mas a mesa da Câmara, em ato
meramente declaratório. Não fosse assim, seria preciso admitir que existe
parlamentar sem direito político. Existe?
Há
mais. Sim, antes do Artigo 15 da Constituição, vem o 14. E ali se estabelece,
no Inciso II do Parágrafo 3º que, para ser candidato é preciso:
II – o pleno exercício dos direitos políticos.
Ora,
é concebível que, para se candidatar, alguém precise estar no pleno gozo
de deus direitos políticos, mas não para ser um parlamentar? Se
dispositivos faltassem para a cassação automática — CONSTITUCIONAIS —, há ainda
a sanção aplicada pelo Artigo 92 do Código Penal:
Art. 92 – São também efeitos da condenação:
I- a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
É
bem verdade que as penas do Artigo 92 não são automáticas e têm de ser
declaradas em sentença. Mas o Código Penal está aí, à disposição dos juízes —
inclusive dos do STF.
Os
mensaleiros e a nova maioria do STF
Seguiu-se, no caso de Donadon, o roteiro da indecência. E, assim, se chega à espantosa condição de haver um deputado presidiário. é certo que o lugar de alguns seria mesmo a Papuda, mas não como representantes do povo. É que ninguém dá bola pra Banânia! Imaginem se dessem: “Ah, naquele país, preso não vota em deputado, mas deputado pode ser preso e continuar… deputado!”
No
julgamento do mensalão, por 5 votos a 4 — o tribunal estava com 9 porque não
haviam sido aprovados ainda os substitutos de Cezar Peluso e Ayres Britto —, o
tribunal decidiu que a condenação implicava a cassação automática dos mandatos
dos deputados-mensaleiros: defenderam essa posição Joaquim Barbosa, Luiz Fux,
Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello. Acharam que a decisão cabe à
Câmara e ao Senado os ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Rosa Weber e
Carmen Lúcia. Então os deputados mensaleiros João Paulo Cunha (PT-SP), Valdemar
Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henry (PP-MT) estão cassados, né? Pois é…
Ocorre
que a questão voltou a ser examinada na recente condenação do senador Ivo
Cassol (PP-RR). E aí se deu o evento espantoso! Roberto Barroso, que, nesta
quarta, fez uma candente defesa da moralidade e da ética na política, resolveu
abrir o caminho para a mudança. Alegando amor à letra da lei — justo ele, que
escreveu um livro sobre um tal “novo constitucionalismo” — houve por bem ignorar
os Artigos 14 e 15 e o Parágrafo 3º do Artigo 55 da Constituição e se fixar
apenas no Parágrafo 2º. Para ele, a cassação é atribuição exclusiva das
respectivas Casas Legislativas. Teori Zavascki o seguiu. Os quatro
(Lewandowski, Toffoli, Rosa e Carmen), que já havia expressado essa posição no
julgamento do mensalão, repetiram seu voto. E assim se formou uma maioria de 6
votos em favor da tese que permite que se repita o que se deu com Donadon: ter
um parlamentar presidiário. É o que pode voltar a acontecer com João Paulo
Cunha (PT-SP) caso se consiga rever aquela decisão.
Acinte,
deboche, esculacho
A decisão da Câmara é um acinte, É um deboche. É um esculacho. Que fique claro: Barroso, Zavascki, Rosa, Carmen, Toffoli e Lewandowski não têm nada a ver com essa particularidade do caso Donadon. Eu estou aqui a demonstrar quais são as consequências práticas da escolha esdrúxula que fizeram no caso de Ivo Cassol. E é inútil os doutores dizerem que, “se o Congresso é assim”, a culpa não é deles”. Se nada podem fazer em relação ao caso Donadon, poderiam ter votado — DE ACORDO COM A LETRA DA LEI — para que essa vergonha não se repetisse. Mas fizeram justamente o contrário.
É
evidente que a defesa dos deputados mensaleiros vai recorrer para evocar o novo
entendimento do tribunal. Donadon pode estar abrindo o prolífico filão de
parlamentares presidiários. Sob a proteção intelectual e jurídica de seis
togados da mais alta corte do país. Com aquela toga vistosa, precisam
tomar cuidado para não virar os black blocs das instituições.
E
Barroso, não obstante, acha que política deve ser uma coisa mais séria. A
política e a Justiça, digo eu.
Por Reinaldo Azevedo
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